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Médico: 'É mais fácil sobreviver a tiro do que ao choque anafilático'

Médico: "É mais fácil sobreviver a tiro do que ao choque anafilático"

O que fazer durante uma crise alérgica? O que acontece com o corpo humano durante um ataque de alergia? Especialista explica

Publicado em 24 de setembro de 2019 às 14:21

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O capoerista Alcebíades Milton Cabral, de 60 anos, morreu após comer arroz com siri desfiado sem saber. Crustáceos estão entre os alimentos que mais provocam alergias. . (Pixabay)

A morte do presidente da Federação de Capoeira do Espírito Santo (Fecaes), Alcebíades Milton Cabral, o Mestre Cabral, de 60 anos, após comer arroz com siri desfiado, levantou dúvidas sobre o risco de alergias. Qualquer pessoa pode desenvolver uma alergia grave repentinamente? O que fazer durante uma crise alérgica? O que acontece com o corpo humano durante uma crise? Veja abaixo a entrevista com um especialista.

MORTE APÓS ARROZ COM SIRI

Mestre Cabral morreu na tarde desta segunda-feira (23) em uma corretora de planos de saúde e empréstimo consignado onde trabalhava, no Centro de Vitória. Ele começou a passar mal após experimentar a comida de um colega, um corretor de 46 anos, sem saber que havia siri dentro. 

“Na hora do almoço, ia pegar minha marmita para esquentar, mas o Cabral pegou, falou que estava cheirosa e pediu para experimentar. Deu duas garfadas e perguntou: ‘Tem o quê, aqui?’ Eu respondi e então ele falou que era alérgico”, disse o colega.

O corretor contou que saiu, desesperado, em busca de medicamento. Mas quando retornou ao escritório, Cabral já estava desacordado. Com ajuda de colegas, eles tentaram reanimar o capoeirista com massagem cardíaca, mas não tiveram sucesso. Uma ambulância do Samu levou o Cabral ao Hospital da Polícia Militar, mas a vítima já chegou ao hospital sem vida.

"ALERGIA É COISA SÉRIA", DIZ ESPECIALISTA

A morte abalou não apenas quem conhecia Cabral, que desenvolveu diversos projetos sociais ao decorrer dos anos e era atuante na luta contra o preconceito - em especial, o racismo. O incidente causou espanto justamente porque muita gente não imaginava que uma pessoa poderia morrer após um ataque alérgico de forma tão repentina, levantando diversos questionamentos sobre o caso.

Mestre Cabral desenvolvia projetos sociais em comunidades. (Foto: Acervo pessoal)

Para José Carlos Perini, médico alergista e presidente da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia no Espírito Santo, alergia é coisa séria e exige cuidados diários. 

Qualquer pessoa pode ser surpreendida por ataque grave de alergia?

Habitualmente, as alergias se constroem durante a vida. Ninguém nasce alérgico, torna-se alérgico, seja por questões genéticas ou oportunidade - quando a pessoa tem contato com alimentos, medicamentos ou materiais que possa ter alergia.

Se você come camarão a vida inteira, por exemplo, e tem tendência genética, corre risco de desenvolver uma alergia futuramente. Existem substâncias mais alergênicas que outras. Mas, raramente, a pessoa passa de zero a 100% numa alergia. Normalmente, os sintomas ficam mais agravados com o tempo. Primeiro vem uma coceira na garganta, na segunda vez os lábios podem inchar, na terceira pode faltar ar, e depois vem o choque. Não exatamente nessa ordem e nessa cronologia, mas o processo de sensibilização a alergias acontece no decorrer do tempo. 

Quais principais alimentos alergênicos?

Os crustáceos, que são os que vivem no mar e possuem casca, como ostra, camarão, siri, mexilhão... Além de leite, clara de ovo, peixes, castanhas e nozes. É importante frisar que crustáceo não é a mesma coisa de peixe. Ou seja, a pessoa pode ter alergia a um e não ter a outro.

Também vale lembrar que não tem relação com o iodo da água de mar. Ou seja, se a pessoa tem alergia a crustáceo e comer um camarão de rio, ela também poderá ter um crise alérgica, pois o alérgeno está na proteína desses animais. Ou seja, também não adianta tirar a casca antes de comer. Além disso, quem tem alergia a um crustáceo, terá alergia a outro, talvez a alergia só não tenha desenvolvido ainda, mas um dia irá. 

Quais os cuidados necessários após descobrir uma alergia?

Acidentes acontecem, mas é essencial que a pessoa investigue a fundo suas alergias, com um bom diagnóstico. Se a pessoa sabe que é alérgica, ela deve montar uma rotina de resgate: carregar sempre consigo os medicamentos de emergência e treinar pessoas que a cercam para fazer o uso desses remédios. É preciso envolver a todos e ser severo. Pois os acidentes acontecem em lugares que você se sente seguro. 

Para evitar a morte durante uma crise alérgica há a adrenalina, que ao ser injetada no corpo consegue parar o choque anafilático. Porém, o Brasil é o único país do mundo que não é permitido o comércio do autoinjetor de adrenalina, que funciona de forma instantânea. Fora do país é caro, custa cerca de R$ 400 para uma única dose, que pode salvar uma vida.

Mas no Brasil há uma adrenalina que não é vendida em farmácia, porém é possível comprar direto com distribuidores, sendo médico ou hospital. O médico pode dar essa adrenalina ao paciente, pois custa apenas R$ 5 a ampola. E o paciente, caso necessário, a usa em uma seringa comum. Há quem critique o uso, mas numa situação de vida ou morte, é a opção para resistir a um choque anafilático.

Portando, com essa ampola de adrenalina e uma seringa, a pessoa deve treinar a si mesmo e as pessoas ao redor. Além disso, devemos avisar a todos sobre as alergias e não podemos confiar em ninguém ao comer fora de casa. Infelizmente, restaurantes e buffet ainda precisam ter mais responsabilidades com alérgicos. Sempre oriento a não comer um peixe em um restaurante se você tem alergia a crustáceo, por exemplo, porque a gente nunca sabe a cabeça das pessoas. Muitos lugares compartilham panelas e fogão, o que pode ser fatal para um alérgico.

Muita gente acha que alergia é frescura...

Sim. Nunca esqueço de um paciente que tinha alergia a camarão e os amigos achavam que era frescura. Aí decidiram colocar camarão na feijoada do alérgico. Resultado: O rapaz só acordou na UTI, com os amigos do lado de fora, morrendo de medo de terem matado o colega. 

Vejo muitas mortes inúteis, que poderiam ter sido evitadas. É preciso fazer uma boa prevenção. Mas ainda há muita omissão e desinformação sobre o assunto. Os médicos deveriam dar mais ênfase ao caso e alertar sobre a gravidade. É importante também ter sempre em mãos o telefone do médico, para auxiliar em casos de emergência. É mais fácil uma pessoa sobreviver a um tiro do que a um choque anafilático. Por isso é tão importante prevenir. 

E se a pessoa não tiver uma ampola de adrenalina durante uma crise alérgica?    

Tem que ter. Ou ela vai morrer. As pessoas podem tentar assoprar a boca, massagear em tórax, mas é uma luta inglória porque ninguém consegue parar um choque anafilático. Apenas a medicação pode auxiliar. Se tiver como entubar pessoa durante a crise, ok, pode ajudar. Mas dificilmente alguém terá esse equipamento. É mais fácil ter a adrenalina.

O tempo de reação alérgica até a morte pode levar de 12 horas a um minuto, depende a gravidade. Quanto mais rápido desenvolvem os sintomas, mais rápido acontece a morte. Se conseguir chegar ao pronto-socorro com crise anafilática, a pessoa não deve sair do local em até 48 horas, pois a chance do ataque voltar em 12h ou 24h é comum. 

O que acontece com o corpo de uma pessoa com crise anafilática? 

Não é exatamente nessa ordem, mas geralmente a pessoa começa com uma coceira, que pode ser na garganta ou pele, depois pele avermelhada, o lábio e a língua começam a inchar, até que a glote feche. A língua pode triplicar de tamanho. Depois vem os sinais de riscos respiratórios: tosse, sensação de sufocação, falta de ar, chiado no peito... Geralmente vem a queda de pressão arterial e depois a parada cardiorrespiratória e a morte. Mas essa ordem não é certa. Tem gente que vai direto ao quadro de perda de pressão. 

O que sentiu quando soube da morte do Mestre Cabral?

Eu fiquei extremamente triste. Na hora pensei: Poxa, eu tenho em mãos uma ampola que custa R$ 5 e poderia salvar essa vida. Mas, infelizmente, falta orientação sobre o assunto. Lamento muito por isso. 

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