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Renata Bravo: 'Feminicídio é último ato de violências que a mulher sofre'

Renata Bravo: "Feminicídio é último ato de violências que a mulher sofre"

Mestre em Direito e especialista em trabalhos de igualdade de gênero, Renata Bravo fala sobre a importância da tipificação do crime de feminicídio e sobre como a sociedade pode atuar para combatê-lo

Publicado em 14 de setembro de 2019 às 23:38

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De acordo com o anuário divulgado na terça-feira (10) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os registros de mortes violentas no país caíram 10,4% em relação a 2018. Com o feminicídio, porém, a situação não se repetiu – foi registrada uma alta de 4%, com 1.206 casos no ano passado, contra 1.151 em 2017.

Quando somados os dois anos, chegamos ao resultado de 2,3 mil mortes, ou seja, uma mulher perde a vida no Brasil a cada oito horas. Lembrando que, para um assassinato ser classificado como feminicídio, é preciso ser qualificado como crime contra a mulher em razão de gênero.

Chamando atenção para esses dados, a mestre em Direito e especialista em trabalhos de igualdade de gênero Renata Bravo lança o livro “Feminicídio: Tipificação, Poder e Discurso” (200 páginas, Editora Lumen Juris). Em pauta, uma oportuna reflexão sobre as bases do patriarcado e do machismo que ainda emoldura as relações sociais.

“É muito comum pensar até hoje que o feminicídio é praticado em situações que envolvem ‘violenta emoção’, ‘ciúmes’ e ‘descontroles’, como eram tratados os crimes anteriormente, os chamados passionais. Ocorre que esse entendimento deve ser deixado para trás, vez que os feminicídios são expressão do patriarcado”, ressalta a autora capixaba cuja obra terá lançamento em Vitória na próxima quarta-feira.

O livro surgiu da necessidade tipificar o feminicídio?

Achei que seria importante transformar a dissertação em livro para que a informação circulasse de forma mais fácil, especialmente no momento em que estamos vivendo de desmonte das universidades, da pesquisa e da educação de qualidade.

Mas a ideia de abordar o tema surgiu a partir de dos estudos que passei a fazer em 2016, quando do ingresso no Mestrado em Direito, além da curiosidade que surgiu por, à época, trabalhar com processos criminais, dentre eles de feminicídios.

Como a tipificação do feminicídio tinha acontecido no ano anterior aos meus estudos (em 9 de março de 2015), entendi que abordar a temática seria importante pra aumentar a produção de conteúdo sobre o assunto. Em 2016 foram criadas as Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios, e eu percebi que pessoas próximas que trabalhavam com o tema não tinham conhecimento delas.

O que é o feminicídio?

Há alguns conceitos que a teoria traz, mas o que acho que mais ilustra de forma objetiva é tratar o feminicídio como o ato extremo, o último ato de uma continuidade de violências que a mulher sofre. É preciso lembrar que as mulheres sofrem diferentes tipos de violências durante a vida – psicológica, moral, patrimonial, sexual – e muitas vezes não se dão conta de que estão sendo vítimas dessas violências.

No aspecto jurídico, a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/15) criou uma nova circunstância qualificadora para o crime de homicídio. É preciso destacar que não foi criado um novo crime, pois “matar alguém” sempre foi tipificado como crime de homicídio. O que a lei fez foi nomear o crime de matar uma mulher em razão da condição do sexo feminino, o que é considerado, pela lei, quando o crime envolve violência doméstica e familiar contra a mulher ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Além disso, criou um aumento de pena para os casos em que o feminicídio for praticado quando a mulher estiver grávida ou no estado puerperal, contra menor de 14 e maior de 60 anos, contra pessoa com deficiência, ou ainda na presença de familiares como filhos e pais.

No âmbito social, considero que a tipificação foi fundamental. Entendo que dar nome ao problema é essencial para que as pessoas saibam que ele existe. Quando se lança luz, passa-se um recado pra sociedade de que esse problema é real e que políticas públicas precisam ser criadas para enfrentar a questão. Acredito que, com a nomeação das mortes de mulheres por razões sexistas, as notícias passaram a ser mais frequentes justamente por conta de maior número de denúncias específicas.

Qual a relação entre feminicídio e o machismo e o patriarcado?

É muito comum até hoje pensar que o feminicídio é praticado em situações que envolvem “violenta emoção”, “ciúmes”, “descontrole”, como eram tratados os crimes antigamente os chamando de “passionais”. Esse entendimento deve ser deixado para trás, os feminicídios são expressão do patriarcado. Como diria a autora Jane Caputi, o feminicídio “é a expressão social de políticas sexuais, um decreto institucionalizado e ritualizado da dominação masculina, bem como a forma de terror que serve para manter o poder da ordem patriarcal”.

Muitas vezes há relação íntima entre vítima e agressor, quando as mortes acontecem após inúmeras ameaças e perseguições após términos de relacionamentos, para exemplificar, mas isso não se aplica a todos os casos. Como disse, o Código Penal prevê que o feminicídio está caracterizado também quando o crime ocorre com menosprezo ou discriminação à condição de mulher, ainda que vítima e agressor não tenham relacionamento afetivo anterior. Mas é certo que a maioria dos casos de violências praticadas contra mulheres é praticada por pessoas próximas, conhecidas dela e da família. Pelos dados apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 88,8% das vítimas foram assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros.

Ainda segundo o anuário, o perfil das vítimas de feminicídio revela que a maior parte delas é negra (61%), que 70,7% delas cursaram somente até o ensino fundamental e que há um número considerável de casos em que as mulheres estão em idade reprodutiva.

O feminismo contribuiu para o combate ao feminicídio?

Dentro de cada movimento social, existem diferentes vertentes. Por isso dizemos que existem feminismos (negro, radical, abolicionista, liberal, interseccional, etc.) e não um só feminismo. Assim, há grupos feministas que entendem que o uso do Direito Penal não é saudável, levando em consideração o sistema penal e carcerário seletivista do Brasil. Não descarto essa realidade. Há no Brasil grupos específicos que são os alvos do sistema penal e é necessário enfrentar tal questão. Para mim o feminismo foi e continua sendo fundamental para enfrentarmos as violências que podem chegar ao feminicídio. Os movimentos sociais têm extrema relevância tanto na conquista dos direitos, quanto no confronto quando esses direitos tendem a ser extintos, como vem ocorrendo, por exemplo, desde a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos pelo ex-presidente Temer.

A sensação que temos é de que um crime de assassinato de mulher choca mais...

Ao mesmo tempo que parece chocar mais, há uma tolerância da sociedade com os diversos tipos de violências que as mulheres sofrem no cotidiano. Embora com alguns avanços, há muito receio de as pessoas externas à relação entre o casal ou o ex-casal, por exemplo, se envolverem na situação, ainda que saibam que a mulher está sofrendo agressões. Ainda que antigo e que deveria ter sido superado, o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher” prevalece no imaginário.

Podemos contribuir, enquanto indivíduos inseridos em uma sociedade?

Certamente. O papel de cada pessoa é importante para a construção do modelo de sociedade que entendemos como ideal. No caso dos feminicídios, se passamos a adotar, individualmente, atitudes que rompam com a naturalização de condutas, como não compartilhar imagens e opiniões machistas, sexistas, não reproduzir violências pelas redes, ou, de forma positiva, se passamos a ouvir com atenção os relatos de mulheres que são agredidas rotineiramente e dar credibilidade a sua palavra, com certeza teremos uma mudança de cultura e as mortes não serão toleradas. Quando os indivíduos entendem a necessidade de provocar o Poder Público a criar leis, medidas e políticas para alterar o cenário de mortes sexistas.

Ser mulher no Brasil é correr risco de morte?

Segundo as notícias diárias nos jornais e também os dados apresentados pelas pesquisas dos institutos que analisam questões de violências, o Brasil realmente é muito perigoso para as mulheres. De 2017 para 2018, houve aumento do número de feminicídios em 4%. Se comparado com o número de homicídios em geral, é assustador, visto que houve redução de 10% no mesmo período. Vale lembrar, ainda, que o Brasil – se comparado a outros países da América Latina – demorou a criar a legislação específica para tipificar o feminicídio. Infelizmente, diante da beleza do nosso país, temos a mancha de sermos um território perigosos para meninas e mulheres viverem, seja nas ruas, no trabalho, nos ônibus ou dentro de casa.

O Espírito Santo é um dos Estados onde mais ocorre o feminicídio. Você vê algum motivo para isso?

O ES continua entre os mais violentos, ainda que esteja entre os que mais tiveram redução, ou seja, sempre foi um Estado em que o perigo de violência sexista contra as mulheres esteve muito presente. Em 2017, o ES figurou como o 7º Estado com maior taxa de feminicídio por 100 mil mulheres.

Não tenho pesquisa específica com relação à sociedade capixaba, mas minha percepção é de muito machismo e conservadorismo no Estado. Na última eleição presidencial, por exemplo, o ES teve maioria na votação no candidato que expressamente tinha discursos homofóbicos, machistas e estimuladores das violências. Talvez isso seja um retrato da tolerância que a sociedade capixaba tenha com relação às ameaças, agressões e mortes de mulheres.

Até que ponto esse discurso do presidente pode estimular essa violência?

Para mim, esse estímulo é direto. No imaginário da sociedade, o Presidente da República é a figura de maior poder no país, o que vem junto com a responsabilidade que o cargo carrega. Se temos um Chefe do Executivo que diariamente fomenta a violência, que desrespeita as mulheres, que afirma que sua única filha foi fruto de uma “fraquejada”, o recado que ele dá à sociedade é que as políticas públicas implementadas por ele serão baseadas todas nesse pensamento sexista e violador de direitos. É como se todos os cidadãos estivessem autorizados a praticar as violências sem qualquer consequência para eles, uma vez que o próprio Presidente as pratica e não há nenhuma sanção imposta ao mesmo.

Uma sociedade armada pode aumentar ainda mais o índice de feminicídio?

Acredito que sim. Essa percepção é baseada no sentimento geral, mas também em dados oficiais. Segundo o Atlas da Violência 2019, estudo feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em conjunto com o Fórum de Segurança Pública, percebeu-se que o maior crescimento nos últimos 10 anos tem sido na taxa de homicídios ocorridos dentro das residências, com o uso da arma de fogo. Esse crescimento foi de 29,8%, por isso há a enorme preocupação com a flexibilidade da posse e do porte de arma de fogo.

Lançamento de “Feminicídio: Tipificação, Poder e Discurso”

Quando: Quarta-feira (18), às 19h.

Onde: Dugê Casa Boutique. Avenida Desembargador Sampaio, 303, Praia do Canto, Vitória.

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Entrada gratuita. O livro estará à venda no evento.

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