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Refugiados senegaleses reconstroem a vida na Expedito Garcia

Refugiados senegaleses reconstroem a vida na Expedito Garcia

Imigrantes africanos foram adotados por comerciantes de Campo Grande e conquistam clientes em Cariacica

Publicado em 11 de janeiro de 2018 às 00:19

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Abdou abraça a 'mãe brasileira', a churrasqueira Maria José. (Rafael Silva)

O francês e o dialeto africano wolof já tomaram conta das calçadas de Campo Grande, em Cariacica. Há pelo menos um ano, um grupo de 15 imigrantes senegaleses montaram suas barraquinhas de camelô na avenida Expedito Garcia, a principal e mais movimentada do bairro. Mesmo com a barreira da língua estrangeira, a simpatia dos novos integrantes do comércio cariaciquense conquistou os outros comerciantes, que afirmam já ter "adotado" os senegaleses.

“Ele já me chama até de mãe (risos). A gente vê que são pessoas trabalhadoras e tenta ajudar com a língua. Tem gente que tenta se aproveitar, principalmente quando eles não entendiam bem o português. Tem comerciante que não gosta, mas são poucos. Vivemos em um país livre, tem espaço para todos trabalharem”, conta a churrasqueira Maria José Pereira.

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Não tem racismo em Campo Grande. Tenho muitos amigos aqui. Se a gente fica triste, sempre chega alguém para conversar

Abdou Fafabitoy
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Ela "adotou" o vendedor ambulante Abdou Fafabitoy, de 29 anos, que veio, há dois anos, da cidade de Kaolack, a 140 quilômetros de Dakar, a capital do Senegal. Ele e outros compatriotas saíram do país por conta da crise financeira que assola sua terra natal. Com excesso de mão de obra, falta de vagas e moeda desvalorizada, muitos jovens africanos têm buscado a América do Sul e a Europa à procura de trabalho.

A porta de entrada no continente americano é o Equador, que não exige visto de entrada de estrangeiros. De lá, eles viajam até Rio Branco, no Acre, e buscam outras capitais brasileiras. A maior parte deles acaba indo para São Paulo ou Porto Alegre, mas, segundo a Defensoria Pública da União (DPU), órgão que auxilia os africanos a se regularizar no Brasil, ao menos 20 senegaleses já deram entrada no processo de regularização no país e a estimativa é de que tenha cerca de 100 deles vivendo no Espírito Santo.

“Um real brasileiro equivale a 160 francos CFA (se fala cê-fa). Lá a gente trabalha muito e ganha pouco. Nossa cultura é de que os pais são sustentados pelos filhos, quando chega a fase adulta. Quando viro adulto, meu pai e minha mãe não trabalham mais, eu que trabalho para dar dinheiro a eles e aos meus irmãos mais novos. Aqui no Brasil, consigo ganhar R$ 1,5 mil e até R$ 2 mil. Gasto R$ 500 para me manter e mando o restante para minha família. Trabalho todos os dias em Campo Grande durante a semana, e nas praias, nos sábados e domingos”, conta Abdou.

Segundo o site Numbeo.com, que cataloga o custo de vida em diversos lugares do mundo, um salário médio no Senegal equivale a 80 mil francos CFA, ou seja, algo em torno de R$ 471. De acordo com um relatório do Comitê Nacional de Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça, havia em 2016 5.658 senegaleses no Brasil, sendo que mais de 4,7 mil deles entraram no país a partir de 2013, quando a crise econômica europeia agravou a situação do país.

 

IMIGRAÇÃO: SAGA COMEÇA NO EQUADOR

Insá Seck está há dois anos no Brasil. (Rafael Silva)

O defensor regional de direitos humanos da DPU no Espírito Santo, João Marcos Mattos Mariano, conta que a situação dos senegaleses se assemelha com a dos haitianos, que apesar de não sofrerem os impactos de uma guerra ou conflitos étnicos, vivem situação de extrema pobreza e buscam refúgio em outros países. 

“É um número que começa a crescer, mas ainda é muito pouco, não chega a 0,3% da população. Só para se ter ideia, nos EUA os imigrantes são mais de 14% das pessoas. Hoje a maior parte dos refugiados no Espírito Santo são sírios (126, segundo o Conare) e tem chegado muitos senegaleses também nos últimos anos. Mas não há que se temer 'uma invasão', por exemplo, eles são muito poucos. O número de brasileiros no exterior, por outro lado, é imensamente maior que o número de estrangeiros no Brasil. Não há que se olhar de forma preconceituosa”, analisa.

Seguidores do islã, muitos senegaleses foram para o Sul do Brasil para trabalhar com o corte de carne halal, técnica que segue os preceitos da religião islâmica e é exportada para o mercado árabe, um dos maiores consumidores de carne bovina do mundo. Com o passar do tempo, muitos buscaram novas oportunidades no Brasil e mudaram de setor.

“O importante é que todos estão documentados, têm carteira de trabalho e identidade de estrangeiro. Alguns até tentam o visto de permanência, que, na prática, equivale a uma ‘naturalização’. O Brasil é signatário da convenção de ajuda humanitária, não há o risco de haver uma caçada de policiais para prender imigrantes ‘ilegais’ como vemos em outros países”, explica Mattos.

Rota da migração de senegaleses até o ES. (Infogram)

A professora de Direito da Ufes e Presidente da Comissão Estadual de Direitos Humanos, Brunela Vieira de Vicenzi, tem acompanhado os senegaleses no Estado. Segundo ela, um grupo menor chegou em Jacaraípe, na Serra, e, ao encontrar boas oportunidades no Espírito Santo, acabou convidando outros senegaleses para a Grande Vitória.

“Infelizmente, quando eles chegaram, pagavam aluguéis absurdos para morar aqui. É uma realidade que acontece com muitos estudantes estrangeiros também. Quando veem que eles tem um pouco de dinheiro, muitas pessoas acabam explorando. Outro erro comum, que às vezes é cometido até por boa fé, é quem os orienta a pedir refúgio, o que acaba atrasando a regularização deles no Estado”, observa.

Segundo a professora, como não enfrentam uma situação de guerra, perseguição religiosa ou racial no Senegal, o pedido dos imigrantes é muitas vezes negado pelo Comitê Nacional de Refugiados (Conare). A melhor forma de regularizá-los é o pedido de visto humanitário, que lhes garante os mesmos direitos e tem tramitação mais rápida.

ATÉ VAQUINHA PARA AJUDAR FAMILIARES DE SENEGALESES

Odete Fosse diz que Insá a ajuda na loja, enquanto ela o ajuda a se adaptar no país. (Rafael Silva)

Insá Seck, de 37 anos, é outro senegalês que conquistou os comerciantes de Campo Grande. Há dois anos e cinco meses no Brasil, ele já foi até convidado para festas de aniversário e ceia de Natal com os capixabas.

“Trabalhei no Rio Grande do Sul, mas gosto mais de Campo Grande. Aqui tenho muitos amigos, que me tratam bem e dão comida. Às vezes da muita saudade da minha esposa e das minhas três filhas, que falo todos os dias por áudio e vídeo pelo Whatsapp. A amizade me ajuda a não ficar tão triste”, revela.

A comerciante Márcia Ferreira está até organizando uma vaquinha para patrocinar uma visita de Insá ao seu país de origem. A viagem custa cerca de R$ 5.500 e objetivo é arrecadar o dinheiro até agosto.

"Eu me preocupo porque eles, muitas vezes, deixam de comer para poder mandar mais dinheiro para a família. Mesmo que a gente arrecade pouco, para eles o dinheiro pode render mais, por conta da moeda de lá”, comenta.

Odete Fosse, que é dona da loja em que Márcia trabalha, diz que é comum as vezes em que é preciso correr com os senegaleses para o hospital. “Eles ficam muito perdidos aqui. O Insá já teve que ir para o hospital algumas vezes, não sei se por conta do calor ou por conta da água. Acho que eles não usam o filtro e acabam passando mal", alerta. 

DIFERENÇAS CULTURAIS

Por conta do movimento intenso de pessoas, os senegaleses escolheram Campo Grande para trabalhar. (Rafael Silva)

Ainda que pareçam adaptados, os senegaleses não escondem a diferença cultural entre os muçulmanos e os brasileiros. Para Falo Mbangia, de 28 anos, a "malandragem" brasileira é algo que não existe no Senegal. Desconfiado, ele relata que já foi vítima de furtos na Expedito Garcia.

“Tem brasileiro que conta muita mentira (risos). Tem muita brincadeira também. Lá não é assim, mas não acho ruim. Só fiquei triste quando me furtaram aqui. Eu sai para comprar comida e levaram relógios", lembra. Em algumas cidades senegalesas é comum decepar as mãos de quem é pego roubando.

Já o vendedor ambulante Falo Mbow, de 28 anos, afirma que quando chegou ao Brasil, o que mais chamou a atenção foi a independência das mulheres. Ele conta que no Senegal é comum que elas fiquem apenas com as atividades domésticas, enquanto os homens trabalham.

“Aqui as mulheres têm mais liberdade para brincar e conversar na rua. Elas mandam mais aqui também (risos). É bem diferente do Senegal. A cultura lá é outra”, ressalta.

 FUTEBOL É ASSUNTO COMUM

Rodrigo Passos, gerente comercial e amigo de Abdou. (Rafael Silva)

Amigo de Abdou, o gerente comercial Rodrigo Passos conta que um dos assuntos mais recorrentes entre ele e o senegalês é o futebol. Ele lembra que quando o Senegal se classificou para a Copa do Mundo de 2018, propôs uma aposta com o amigo, caso a seleção africana cruzasse com o Brasil durante o torneio.

“Ele gosta muito do Sadio Mané, que joga com o Phillipe Coutinho no Liverpool, da Inglaterra. Eles se classificaram para a Copa na última rodada e falei para a gente apostar caso Brasil e Senegal caíssem no mesmo grupo. Se ele ganhasse, ele escolhia algo da loja, mas se a gente vencesse, aí eu é que pegaria algo da banca dele. Só que ele não quis apostar”, brinca.

Sabendo da paixão pela bola do senegalês, amigos de Abdou ainda tentam convencê-lo a jogar a pelada dos comerciantes, algo que o africano sempre rejeita.

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“Estou no Brasil a trabalho, quero juntar dinheiro para, junto com um amigo, construir uma escola no Senegal. Se eu jogo bola, fico cansado e não trabalho direito. Sou formado em História, Língua Francesa e Língua Inglesa e sonho em dar aulas. Mas gosto muito de futebol, principalmente do Ronaldo e do Ronaldinho. Eles são exemplos de coragem para mim”, pondera o senegalês.

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