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'Não presenciei ameaças tão sérias aos direitos do consumidor como agora'

"Não presenciei ameaças tão sérias aos direitos do consumidor como agora"

Nova presidente da Associação do Ministério Público do Consumidor afirma que país vive um cenário conturbado que pode levar à flexibilização das regras que hoje protegem a população de abusos

Publicado em 12 de agosto de 2018 às 13:06

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Em quase 28 anos de Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Brasil passou por diversas transformações nas relações de consumo. Muitos serviços, como o de telefonia, ganharam novos formatos. O setor financeiro também mudou. O avanço econômico permitiu o acesso da população ao transporte aéreo, ao plano de saúde e também conectou os brasileiros a uma nova realidade baseada nos negócios on-line.

Junto com essas mudanças, consumidores passaram também a reivindicar o respeito aos seus direitos e sempre contaram com vários órgãos como aliados. Agora, o país vive novos desafios que podem tirar vitórias importantes para o cidadão, segundo a promotora de Justiça Sandra Lengruber, que assumiu na última quinta-feira, dia 9, a presidência da Associação do Ministério Público do Consumidor (MPCON).

O enfraquecimento, neste governo, da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), ligada ao Ministério da Justiça, na visão dela, coloca em xeque a continuidade de ações importantes no combate às irregularidades das empresas contra os clientes. “Estou pegando uma locomotiva em alta velocidade”, diz Sandra, titular da 35ª Promotoria Cível de Vitória e que deixou, no meio deste ano, o Centro de Apoio e Defesa do Consumidor (CADC), do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), departamento que ela coordenou por seis anos.

Os riscos aos direitos do consumidor podem ser vistos, de acordo com a promotora, em estudos em andamento nas agências reguladoras, em projetos de lei que tramitam no Congresso e até em ações no governo federal. O aplicativo Consumidor.gov, que permite as pessoas dialogarem diretamente com a empresa para conseguir uma solução para o problema, é um dos programas ameaçados, assim como o Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), que reúne dados de todas as reclamações registradas nos Procons.

Depois de travar no Estado uma briga contra as operadoras de telefonia móvel, ao exigir o cumprimento de metas de qualidade, e de conduzir um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para rastreabilidade de agrotóxicos, por exemplo, Sandra afirma que a atuação nacional seguirá na mesma linha. Entre os focos da MPCON estão impedir o avanço do pacote do veneno e, principalmente, a flexibilização de regras nos setores de telefonia, saúde suplementar e transporte aéreo. Confira a entrevista:

Quais são os desafios ao assumir a presidência da MPCON?

Sou promotora desde 1997 e estou na área de defesa do consumidor desde 2004. Desde então, não havia presenciado ameaças tão sérias aos direitos dos consumidores como tenho visto agora. Estou pegando a locomotiva em alta velocidade ao assumir a presidência da MPCON diante do cenário atual. O país passa por um momento econômico, político e ético conturbado. São vários projetos, principalmente no Congresso, que podem trazer prejuízos sérios à defesa do consumidor. Além disso, temos presenciado um verdadeiro desmanche da Senacon, uma secretaria que coordena todo o sistema de defesa do consumidor no país, que traça a política nacional. É ela quem conduz as ações estratégicas aplicadas por todos os órgãos de defesa do consumidor, como os Procons, as associações e a Defensoria Pública. O desmonte da Senacon tem ocorrido de várias formas, com a retirada de cargos importantes no enfrentamento dos abusos, na transferência de serviços qualificados para outras áreas. Posso dizer que, considerando ser direito fundamental consagrado na Constituição Federal, a defesa do consumidor não está sendo tratada com a importância devida pelo governo federal no que tange às decisões que vêm sendo tomadas em relação à Senacon. Temo pelo futuro do Consumidor.gov e também do Sindec.

Há outras ameaças que também preocupam a MPCON?

Sim. Um dos setores que vamos acompanhar com prioridade é o de telefonia. Existem estudos em andamento na Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), de impactos regulatórios, que podem promover alterações importantes na defesa do consumidor. Estamos acompanhando, pela MPCON, as possibilidades de alterações nas normas que vão dificultar ou mesmo inviabilizar as fiscalizações dos cumprimentos de metas de qualidade. Teremos em setembro uma reunião com a Anatel para saber exatamente como serão essas alterações. Mas já estamos nos articulando antes. Uma das mudanças que será proposta está no Regulamento Geral de Qualidade. Hoje, a partir dessa norma, conseguimos verificar se uma operadora chega a completar no mínimo 95% das chamadas, das conexões de internet e entregar esse percentual de SMS. Foi assim que descobrimos descumprimentos importantes no Espírito Santo, que nos fizeram agir contra algumas operadoras. A Anatel pretende colocar uma nova fórmula que o operador do Direito (promotores de Defesa do Consumidor) não conseguirá mais averiguar se os indicadores são atendidos. Hoje, existem quatro indicadores, um para telefone fixo, outro para comunicação multimídia, outro para telefonia celular e mais um para a internet. A proposta é reunir tudo em um só indicador, além de fazer uma média ponderada com a percepção do consumidor. Temos a preocupação que isso venha a mascarar as falhas na prestação do serviço. Além disso, a Anatel quer mudar o Regulamento Geral do Consumidor, que obriga hoje, por exemplo, as operadoras a atenderem o cliente em 30 minutos numa loja física e em 60 segundos pelo call center. A história do cancelamento do contrato também ocorrer com o primeiro atendente também está em jogo. A Anatel argumenta que o tempo de 60 segundos, para o SAC, é muito pouco e que transferir a ligação para uma segundo operador mais qualificado não causa prejuízo ao consumidor.

Assim como a Anatel, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) tentou promover alterações importantes nos planos de saúde. Como avalia esse cenário?

Recentemente, a ANS havia editado uma norma que previa a possibilidade de cobrança de franquias e percentual de coparticipação do usuário. Acompanhamos todo o movimento desses pontos sensíveis. A OAB acabou propondo uma ação e conseguiu uma liminar, mas a ANS acabou recuando das propostas. O convênio com franquia, por exemplo, funcionaria como o seguro de carro. A pessoa pagaria pelos procedimentos que ficassem abaixo do valor estipulado para a franquia. Apenas serviços mais caros seriam cobertos pelo plano. Mas, além dessas alterações, outras estão em andamento, com projetos de lei que pretendem permitir, numa linguagem simples, a criação de planos populares que dariam direito apenas a consulta e cobertura ambulatorial. Os custos hospitalares ficariam de fora. Nós temos dúvidas se realmente haverá assistência à saúde do consumidor com planos tão restritos. O argumento usado é o mesmo para a cobrança de bagagens no transporte aéreo, de que o serviço ficaria mais barato. Porém, não ficaram. Para nós, as propostas só vão elevar os custos para o consumidor.

Haverá um trabalho focado apenas na aviação civil?

O transporte aéreo também será uma das nossas prioridades. Estamos presenciando várias práticas comerciais que trazem ônus para os consumidores. Não sabemos onde isso vai parar. Começou com a cobrança do lanche, depois veio a cobrança da bagagem. Agora, as empresas querem exigir pagamento para quem marcar assento. Elas dizem que todas essas mudanças visam ao barateamento das passagens, mas essa contrapartida não está acontecendo. Em relação à questão das bagagens, foi proposta uma ação no Ceará, que foi julgada improcedente. Agora o assunto está no Tribunal Regional Federal. Estamos avaliando pedir para ser parte do processo como amigo da Corte, com a finalidade de acompanhar.

Um das suas frentes de trabalho no Espírito Santo é a questão do agrotóxico, com a rastreabilidade dos alimentos. Esse tema será discutido também nacionalmente? Haverá uma atuação da MPCON para barrar o pacote do veneno?

A rastreabilidade dos alimentos é uma tendência nacional. Pela norma federal, o prazo para o primeiro grupo de alimentos a ser rastreado iniciou na semana passada. Pela legislação estadual, que é a aplicável no nosso Estado, o prazo do primeiro grupo de produtos a ser rastreado se iniciou no final de maio e vem tendo muita adesão pelo setor agrícola capixaba. A importância da rastreabilidade é podermos conhecer a cadeia produtiva e, assim, havendo utilização irregular de agrotóxicos, poder realizar a orientação do produtor. A MPCON, aliás, vai acompanhar esse assunto porque entendemos que é necessário ser muito criterioso no uso de agrotóxicos e não facilitar, como propõe o projeto de lei apelidado de pacote do veneno. Essa proposta quer facilitar o registro e a utilização de determinadas substâncias, reduzindo também o poder dos Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente na análise desses produtos.

Hoje, algumas empresas tentam enganar o consumidor com embalagens que não informam a real composição de um alimento. Como será o trabalho de proteção à saúde do consumidor?

Há uma grande preocupação em se aprimorar a rotulagem nutricional, pois o modelo legislativo atual não contempla suficientemente a clareza informacional necessária. Ao mesmo tempo presencia-se um aumento da obesidade e diabetes em adultos e crianças, assim como a oferta no mercado de consumo de produtos processados e ultraprocessados. Entende-se ser necessária, diante do direito humano à alimentação adequada, que a rotulagem seja frontal e que a informação nutricional seja por ml ou mg. A Anvisa está em processo de análise de impacto regulatório, cujo prazo de contribuição encerrou-se em julho. Aguardamos, assim, o processo de consolidação das informações.

Uma pauta esquecida hoje no Congresso é a atualização do Código de Defesa do Consumidor, que trata sobre o superendividamento e sobre o comércio eletrônico. Haverá uma pressão para que o assunto seja votado?

É um projeto importantíssimo para a defesa do consumidor. Vamos buscar que tais propostas sejam votadas o quanto antes. Deve-se não apenas evitar que os projetos de lei que prejudiquem o consumidor sejam aprovados, mas, com muito mais intensidade, buscar aprovação de medidas que sejam favoráveis e beneficiem o consumidor.

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Sandra Lengruber iniciou a carreira no Ministério Público do Espírito Santo (MPES) no ano de 1997. Desde 2004, atua na área de defesa do consumidor. Entre 2012 e 2018, foi dirigente do Centro de Apoio e Defesa do Consumidor (CADC). Entre os trabalhos promovidos no Estado, estão o acompanhamento do contrato de concessão da Rodosol e as investigações envolvendo irregularidades das operadoras de telefonia. Foi responsável pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado com as teles para melhoria na qualidade do sinal. Também atuou na investigação contra construtoras que cometiam abusos nos contratos de compra e venda. Atuou como uma das juristas no projeto de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Mais recentemente, a promotora coordenou a celebração de acordos com os supermercados visando à rastreabilidade e à regularidade no uso de agrotóxicos.

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