Consumidores do mundo todo, uni-vos! Já está em curso uma revolução que tem como principal arma o uso consciente e até político do poder de compra.
Calma, leitor, o objetivo não é derrubar governos nem sistemas políticos, mas, sim, combater problemas como a poluição, a produção de lixo, o trabalho escravo, o uso de agrotóxicos e a marginalização de trabalhadores do campo.
Essa é a transformação almejada por consumidores e empresários capixabas que descruzaram os braços e estão revendo hábitos e cadeias produtivas para promover, por eles mesmos, a mudança que esperam para o mundo.
Uma dessas revolucionárias é a empresária Júlia Bottecchia, de 26 anos. Apaixonada por moda, ela começou a se incomodar com a poluição e as denúncias de trabalho escravo na indústria das roupas e abriu o Desapegue, um espaço para as pessoas desapegarem de suas roupas e ensinar outros consumidores a tornar as peças que não querem mais em algo atrativo.
Eu era uma consumidora assídua de fast fashion (produção de roupa em larga escala), comecei a pensar no lixo que eu gerava, criei o Desapegue e já não compro mais roupas há dois anos. Mesmo quando quero uma peça nova, procuro tecidos mais sustentáveis, busco por desenhos e vou até uma costureira, oferecendo uma remuneração mais justa, até para desenvolver a economia local, conta.
Para incentivar as pessoas a comprar menos e gerar menos lixo Júlia também criou um guarda-roupa compartilhado, com mais de 400 itens, que podem ser utilizados por clientes que pagam uma taxa mensal. Uma das pessoas que aderiu foi a nutricionista Carol Bourguignon, de 27 anos. Para ela, utilizar o poder de compra de maneira mais consciente é um ato político.
Procuro saber se o produto é testado em animais, o posicionamento da marca, se pode ser reciclado e os materiais que eles usam. Se cada um fizer sua parte, é possível chegar a mudanças maiores, avalia.
DO CAMPO À CIDADE
O estudante de Educação Física Júlio César Lody, 26, já não conseguia comprar produtos em supermercados. Segundo ele, o uso excessivo de embalagens descartáveis, os processos de conservação dos alimentos e os legumes com o agrotóxico o afastavam cada vez mais das prateleiras.
Queria algo mais sustentável. Mesmo os produtos orgânicos eram exportados, poluíam muito no transporte até a cidade e não valiam a pena, lembra.
Junto com o publicitário Rian Melo, 27, abriu uma loja em Vila Velha só de produtos orgânicos produzidos no Espírito Santo por pequenos agricultores. A gente brinca que nossos clientes são aqueles que entendem a ideia e já vêm com a bolsa reutilizável. Os que ainda não vêm com ela, são os que precisamos convencer, diz.
Além de vender os produtos, eles iniciaram um projeto piloto para coletar o lixo orgânico de 15 casas no município. O material é levado para uma composteira e retorna para os pequenos agricultores como adubo. Uma das casas que faz a coleta é a da médica Teresa Gomes, 54. Ela conta que a família toda resolveu mudar os hábitos há 10 anos.
Eu tento reduzir ao máximo meu lixo. Conseguimos a coleta seletiva aqui no prédio, mas o orgânico, por falta de espaço para fazer compostagem, eu triturava e jogava fora. Agora, os meninos passam aqui, deixam o recipiente e vêm, de bicicleta, fazer a coleta. Me dá um alívio na alma, explica.
Outra iniciativa é construída por uma Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA), uma tecnologia social mundial que já tem adeptos no Estado. O projeto visa a criar um grupo de parceiros que passam a dividir com agricultores os custos da produção em troca de alimentos.
Um dos parceiros tinha contato com comunidades quilombolas do Angelim e do Linharim, em Conceição da Barra. Nossa ideia é pagar uma taxa mensal para que agricultores de lá possam produzir alimentos, de acordo com o que a terra dá a cada época do ano. É uma forma de remunerar melhor o campo e ter alimentos mais saudáveis, conta a nutricionista Mariana Corrêa, 33, uma das integrantes do grupo.
AS REVOLUÇÕES
Guarda-roupa compartilhado
O que é?
Um acervo de mais de 400 itens que é compartilhado com diversas pessoas.
Objetivo
Diminuir a produção de lixo da indústria da moda.
O que combatem?
Trabalho escravo, fast fashion (produção de roupa em larga escala), poluição.
Coleta de lixo orgânico
O que é?
Empresa especializada em recolher o lixo orgânico no ambiente urbano para transformá-lo em adubo por meio da compostagem e fornecer para produtores agrícolas.
Objetivo
Diminuir a poluição na natureza e auxiliar produtores com adubos naturais.
O que combatem?
Desperdício, uso de agrotóxico e poluição
Agricultura compartilhada
O que é?
Famílias urbanas se unem para patrocinar agricultores de comunidades quilombolas a produzir alimentos.
Objetivo
Ter alimentação mais orgânica, combater uso de agrotóxico e desenvolver economia local.
O que combatem?
Má remuneração, êxodo rural, uso de agrotóxico.
Produção orgânica local na cidade
O que é?
Grupo que cria espaços nas grandes cidades para receber pequenos agricultores de orgânicos, auxiliando no manejo, no transporte e na venda de produtos certificados.
Objetivo
Incentivar economia local e a produção orgânica.
O que combatem?
Uso do agrotóxico e má remuneração.
Brechó
O que é?
Incentiva consumidores a reformar as roupas que não querem mais para vender a outras pessoas.
Objetivo
Diminuir a produção de lixo na indústria da moda e valorizar costureiras locais.
O que combatem?
Trabalho escravo, fast fashion, poluição.
"CELULAR É ARMA PARA MONITORAR AS EMPRESAS"
Professor da FGV diz que responsabilidade social das companhias está mudando
O consumidor do século XXI está cada vez mais empoderado. É o que acredita o professor de Marketing da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em varejo Roberto Kanter. Para ele, as redes sociais ampliaram a voz de compradores e o acesso à informação os dá mais poder para confrontar marcas.
Em sua avaliação, o consumo consciente, no entanto, ainda se resume às classes mais altas, e que, para chegar até todos os consumidores, depende da Educação, com a sustentabilidade e a força do poder de compra sendo temas tratados desde cedo nas escolas.
Não é novo, é uma evolução do empoderamento do consumidor. Ele faz, sim, o uso do seu cartão de crédito e do seu poder de compra como uma forma de manifestação. Esse comportamento é resultado da massificação da informação sobre as empresas, que antigamente eram mais blindadas e hoje, com as redes sociais, as pessoas conseguem acompanhar tudo pelo celular e fazer um discernimento na hora da compra.
É algo que está crescendo?
Sim. Uma pesquisa feita pela Danone na Califórnia (EUA) há 10 anos mostrou que 55% das pessoas de lá já escolhiam seus produtos na imagem corporativa. Ou seja, não era em função da tradição da marca, nem do sabor e nem do preço, era a reputação.
Ainda é muito elitizado. As classes A e B predominam esse comportamento. Mas eu diria que, com a Educação, com as escolas públicas debatendo a sustentabilidade ambiental e social em sala de aula, isso tende a se espalhar.
Como o mercado está absorvendo isso?
Quem está absorvendo isso são as grandes corporações, com mudanças em suas políticas de responsabilidade social, e as startups, que surgem com pessoas jovens mais conscientes.
No entanto, as empresas médias, de administração familiar e mais conservadoras, estão tendo dificuldade. Elas continuam com o foco no produto e no serviço, sem observar o consumidor. São empresas que possivelmente acabarão sendo vendidas ou mudando só quando trocar de geração, promovendo um ajuste social. O momento é de um capitalismo menos selvagem.
O poder de compra pode virar arma ideológica?
Sim, já está acontecendo. O exemplo da JBS, com o escândalo de corrupção que se envolveu, é muito emblemático. Suas marcas, como a Friboi, ainda estão sendo afetadas. Conheço muita gente esclarecida que não compra mais. Isso é uma tendência e é irreversível.
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