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Povo da Indonésia se adaptou geneticamente para uma vida de mergulhos

Povo da Indonésia se adaptou geneticamente para uma vida de mergulhos

Cientistas identificam pela primeira vez em humanos seleção de gene que ajuda integrantes de uma população a prenderem a respiração por mais tempo

Publicado em 19 de abril de 2018 às 20:21

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Um mergulhador Bajau caça peixes com uma lança tradicional: por mais de mil anos população sobreviveu coletando seu alimento de baixo da água. (Melissa Ilardo)

Cientistas encontraram pela primeira vez evidências de que os seres humanos podem se adaptar geneticamente para o mergulho. Elas sugerem que o povo Bajau, que vive em partes da Indonésia, desenvolveram baços maiores para permitir que mergulhem livremente, em apneia, a até 70 metros de profundidade.

Embora pesquisadores já tenham teorizado anteriormente que o baço tem um importante papel para que humanos mergulhem em apneia por longos períodos, a relação entre o tamanho do órgão e a capacidade de mergulhar nunca tinha sido examinada em nível genético.

O achado, publicado nesta quinta-feira (19) na revista científica “Cell”, também pode ter implicações na medicina, especialmente num condição conhecida como hipoxia aguda, que pode provocar sérias complicações em atendimentos de emergência.

Durante mais de mil anos, o povo Bajau, também conhecido como “nômades do mar”, viajaram pelos mares do Sudeste Asiático em casas-barco, coletando alimentos mergulhando com lanças. Agora assentados em ilhas da Indonésia, eles são conhecidos na região por sua extraordinária capacidade de prender a respiração. Integrantes desta população podem mergulhar a até 70 metros sem nada mais que um conjunto de pesos que serve como lastro e um par de óculos feitos com madeira.

Mas como os Bajau nunca mergulharam competitivamente, não se sabe quanto tempo eles conseguem ficar debaixo da água. Um deles, no entanto, contou para a pesquisadora Melissa Ilardo, então estudante de doutorado na Universidade de Copenhague, Dinamarca, certa vez ter mergulhado por 13 minutos. Ilardo, primeira autora do artigo na “Cell”, suspeitou que os Bajau poderiam ter se adaptado geneticamente para terem baços maiores devido ao seu estilo de vida de caçadores-coletores marinhos, algo que também já tinha sido observado em outros mamíferos.

"Não existem muitas informações sobre o baço humano em termos de fisiologia e genética", conta. "Mas sabemos que focas que mergulham fundo, com as focas de Weddell, têm baços desproporcionadamente grandes. Pensei que, se a seleção natural agiu sobre as focas para dá-las baços maiores, ela potencialmente poderia ter feito o mesmo com humanos".

O baço tem um papel central no mergulho em apneia por formar parte do que se conhece como “resposta humana ao mergulho”. Quando submerso em água fria mesmo por um curto período de tempo, o corpo humano ativa esta resposta como forma de ajudar a sobreviver em um ambiente sem oxigênio respirável.

O ritmo cardíaco desacelera, os vasos sanguíneos das extremidades se contraem para que guardar sangue para os órgãos vitais, e o baço se contrai. E esta contração do baço fornece um reforço de oxigênio ao jogar na circulação hemácias oxigenadas, aumentando em até 9% a disponibilidade da molécula e assim prolongando o tempo que se consegue ficar mergulhado.

 

Para o estudo, Melissa Ilardo passou meses em Jaya Bakti, Indonésia, coletando amostras genéticas e fazendo exames de ultrassom dos baços tanto de pessoas Bajau quanto de seus vizinhos “terrestres”, o povo Saluan. Os exames mostraram que os Bajau têm um baço em média 50% maior que os Saluan, e o aumento no tamanho do órgão foi observado mesmo em integrantes do povo Bajau que não mergulhavam regularmente.

Com isso, a equipe de pesquisadores, que também inclui cientistas das universidades de Cambridge, Reino Unido, e da Califórnia em Berkeley, EUA, excluiu a possibilidade dos baços aumentados serem resultado de uma resposta “elástica” ao hábito de mergulhar.

Assim, foi a vez dos cientistas “mergulharem” nos dados genéticos sequenciados por Melissa em Copenhague, descobrindo que os Bajau têm um gene, designado PDE10A, ausente no genoma dos Saluan, que acredita-se controlar os níveis do hormônio da tireoide T4.

"Acreditamos que os Bajau têm uma adaptação que elevou os níveis do hormônio da tireoide que, assim, aumentaram o tamanho de seu baço", avalia Melissa. "Já foi demonstrado em camundongos que há uma conexão entre os hormônios da tireoide e o tamanho do baço. Se você alterar camundongos para que não produzam o hormônio T4, o tamanho de seus baços é reduzido drasticamente, num efeito que pode ser revertido se receberem injeções de T4".

Assim, esta é a primeira vez que uma adaptação genética para o mergulho foi encontrada em humanos, acrescentou a pesquisadora. "Até agora, não se sabia se as populações de “nômades dos mares” tinham se adaptado geneticamente para seu estilo de voda extremo. O único traço do tipo previamente estudado tinha sido a melhor visão submersa de crianças de povos nômades dos mares da Tailândia, mas isso mostrou-se ser uma resposta plástica a treinamentos, replicável em grupos de europeus".

Melissa foi originalmente alertada para não fazer o estudo no seu doutorado pelos seus orientadores, o professor Eske Willerslev, que tem posição dupla no St John's College da Universidade de Cambridge e na Universidade de Copenhague, e o professor Rasmus Nielsen, que também tem uma cátedra dupla, em Copenhague e na Universidade da Califórnia em Berkeley.

"Dissemos a Melissa que era um doutorado muito arriscado e que ela deveria estar atenta à possibilidade de não encontrar nada", lembra Willerslev. "Ela respondeu que faria isso de qualquer jeito, e foi premiada. Melissa estava certa, e nossas preocupações equivocadas".

O estudo também deverá ter implicações no mundo das pesquisas médicas. A resposta humana ao mergulho simula as condições da hipoxia aguda, em que os tecidos corporais experimentam uma rápida redução no fornecimento de oxigênio.

Esta é a principal causa de complicações em atendimentos de emergência, e como resultado já é alvo de diversos estudos genéticos, especialmente de povos que vivem em grandes altitudes. Assim, o estudo de habitantes dos mares como os Bajau fornece uma maneira alternativa de pesquisas a hipoxia aguda.

 

"Esta é a primeira vez que realmente temos um sistema como este em humanos que pode ser alvo de estudos", comemora Nielsen. "Isso vai nos ajudar a fazer a ligação entre a genética e a resposta fisiológica à hipoxia aguda. É um experimento sobre a hipoxia que a própria natureza está conduzindo para nós de uma maneira que não podemos fazer nos laboratórios".

A descoberta também abre caminho para possíveis pesquisas futuras sobre outras populações “nômades marinhas”, como o povo Moken da Tailândia ou as mulheres mergulhadoras da etnia Haenyeo em Jeju, na Coreia do Sul.

O estudo de populações com pressões ambientais similares pode jogar nova luz sobre a natureza da conexão entre a fisiologia humana e adaptações genéticas a estilos de vida extremos, esclarecendo se estas adaptações genéticas se desenvolveram separadamente nas diferentes populações. E continuar as pesquisas nesta área é uma necessidade urgente, já que os modos de vida tradicionais destas populações estão sob ameaça ou desaparecendo em várias comunidades.

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"Esta pesquisa é um exemplo maravilhoso do valor de estudar estas pequenas populações vivendo sob condições extremas", conclui Willerslev. "Muitas delas estão ameaçadas e esta será uma perda não só cultural ou linguística, mas também para a genética, a medicina e a ciência em geral. Ainda há muitas informações a serem coletadas destas populações tão pouco estudadas".

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