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Mediterrâneo é o maior cemitério da Europa hoje, diz capitão do Lifeline

Mediterrâneo é o maior cemitério da Europa hoje, diz capitão do Lifeline

Em caso emblemático, Claus-Peter Reisch passou sete dias com 233 imigrantes em navio à espera da ajuda de países europeus e acabou preso. Agora, será julgado em Malta

Publicado em 23 de julho de 2018 às 09:52

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Imigrantes resgatados em embarcação . (Divulgação/Arquivo Gazeta Online)

Depois de acompanhar o drama dos refugiados e migrantes mortos por afogamento no Mediterrâneo, o ex-mecânico de automóveis Claus-Peter Reisch, hoje com 57 anos, resolveu ajudar as vítimas pessoalmente. O capitão do navio Lifeline detalha como passou uma semana à deriva no mar, com 233 imigrantes a bordo, à espera da ajuda de países europeus. Ele revela, ainda, nesta entrevista ao GLOBO, que o número real de mortos é muito acima do divulgado, pois, para cada vítima oficial, há uma fora das estatísticas.

— O ministro do interior da Itália, Matteo Salvini, tentava nos criminalizar com um vocabulário desumano que eu julgava não ser mais possível na Europa. Ele usou até a expressão "carga de carne humana". Não podemos nem conversar com um político desse tipo, que faz política populista às custas dos mais fracos — critica Reisch.

Com o que havia aprendido num curso de capitão amador, o alemão interrompeu as férias que passava na Grécia com a mulher para tentar salvar os náufragos no Mar Egeu. Depois, ajudou em 2016 a fundar a ONG Mission Lifeline, que, desde o início de 2017, salva vítimas de naufrágios no Mediterrâneo. Em junho, o Lifeline ficou sete dias no mar, com 233 fugitivos e sem estrutura, aguardando autorização para atracar. Malta acabou permitindo, depois que França e Alemanha aceitaram receber parte dos imigrantes. Mas, assim que atracaram, o capitão foi preso, acusado de irregularidades no navio. Mediante fiança de 10 mil euros, foi libertado, mas o caso será julgado em Valletta dia 30.

Como foram os últimos dias no Lifeline, antes de receber a autorização para atracar em Malta?

Foram dias terríveis. Quando conseguimos atracar em Malta, a situação já estava insuportável, com muitos imigrantes apáticos e com hipoglicemia, quase entrando em estado de coma. Muitos precisaram de tratamento no hospital. No navio, o maior problema era a infraestrutura insuficiente para uma longa estadia. Na cozinha da pequena embarcação, precisávamos preparar centenas de refeições e já estávamos no fim da nossa capacidade. Enquanto isso, o ministro do interior da Itália, Matteo Salvini, tentava nos criminalizar com um vocabulário desumano que eu julgava não ser mais possível na Europa. Ele usou até a expressão "carga de carne humana". Não podemos nem conversar com um político desse tipo, que faz política populista às custas dos mais fracos.

Malta permitiu a atracagem do navio, mas mandou prender o senhor logo em seguida. Como aconteceu?

A ordem de prisão não foi causa do transporte de fugitivos, mas, segundo alegaram, porque a licença do navio não era válida, o que não é verdade. Trata-se de um pretexto porque a motivação verdadeira é evitar receber mais refugiados. Mas eu não vou me intimidar e enfrentarei mais esse desafio. Embarco para Malta no próximo dia 29 para acompanhar o processo no dia seguinte e, depois de resolver isso, voltaremos a salvar os refugiados que ficam à deriva em seus botes. Em parte, consigo compreender que esse país é superpovoado e já recebeu muitos fugitivos. O problema é a recusa dos países da União Europeia em assumir a responsabilidade de aceitar os socorridos que desembarcam em Malta. Se fosse possível distribuí-los entre os diversos países do bloco, Malta poderia ser apenas um centro logístico para recebê-los.

Os outros integrantes da tripulação são também marinheiros amadores?

São pessoas de várias profissões que se prepararam para a tarefa do resgate de náufragos. Muitos tiram férias do trabalho para poder ajudar. Somos 18 pessoas entre 20 e 70 anos de idade, sendo dez alemães e oito pessoas de outros países.

Como os fugitivos reagiram depois do resgate? O risco foi muito grande quando a permissão de atracagem do navio foi negada durante sete dias?

Havia dois grupos. Uma parte dos refugiados estava muita apática e enfraquecida com a espera. E outros entraram em júbilo com a chance de desembarque e continuaram bem nos dias de espera. Como transportamos mais passageiros do que a nossa capacidade, que era de apenas 50 pessoas, muitos precisaram ficar na proa do navio. O que nos ajudou também é que tivemos sorte com o bom tempo, pois, quando há temporal, os riscos para o resgatados são mais desfavoráveis.

Diante do cerco que se fecha nas fronteiras dos países da União Europeia, quais são as possibilidade para as ONGs que prestam socorro aos refugiados à deriva no mar?

Sem dúvida, trata-se de um grave problema. A decisão vai contra as próprias leis da UE e as convenções internacionais, que afirmam que os fugitivos salvos não podem ser levados de volta ao porto de embarque de onde fugiram da guerra, do terrorismo e da fome. Mas, ainda assim, todos os dias, dezenas de pessoas morrem durante a tentativa de atingir a Europa, e a recusa dos países em receber os fugitivos vai resultar em mais mortes. Hoje, o Mediterrâneo virou o maior cemitério da Europa. Nós conhecemos apenas o número de vítimas que foram registradas, através de fotos, posição e data. Contudo, para cada vítima divulgada oficialmente, há um morto que nem aparece nas estatísticas. Os barcos vazios que localizamos indicam que muitos morrem e ficam no mar sem que ninguém tome nem conhecimento. Dados da Organização Internacional para as Migrações revelam que 2.409 pessoas morreram no Mediterrâneo em 2017. Contudo, nossas investigações revelam que este número é quase o dobro.

Em 2015, os fugitivos saíam, principalmente, da Síria, por causa da guerra civil. Agora, a maioria foge da África. Se a pobreza já existia na África, o que motivou esse aumento do movimento migratório de africanos para a Europa nos últimos dois anos?

Vivemos hoje uma situação absurda. A UE exporta para a África produtos agrícolas altamente subsidiados, arruinando a economia local dos diversos países e contribuindo para o aumento da pobreza local. De certa forma, até as doações de roupas podem ter um efeito negativo e levar à ruína de empresas têxteis africanas. O outro problema é que o dinheiro transferido por alguns países europeus na forma de ajuda ao desenvolvimento desaparece nos bolsos de políticos corruptos. Um outro aspecto é a indústria de armamentos. Ninguém arriscaria a sua vida na travessia do Mediterrâneo em embarcações precárias se não fosse pressionado pela fome e pelos conflitos armados. Quer dizer, a África é saqueada pelos países ocidentais, que depois não querem ver de perto o efeito da sua política. Eles fecham as suas fronteiras e ignoram que estas vítimas vão morrer justamente tentando fugir da situação que seus países criaram.

Como o senhor se sente pessoalmente depois de ter salvo a vida de mais de duas centenas de pessoas?

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Me sinto muito aliviado por ter conseguido. A sensação é de felicidade e a convicção ainda maior de que o mundo não pode continuar indiferente à tragédia dos migrantes clandestinos.

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