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Policiais em tempo integral, artistas nas horas vagas no ES

Policiais em tempo integral, artistas nas horas vagas no ES

Seja na pintura, na música ou na dança, esses militares dão um show de talento e conseguem através da arte desmitificar a figura do policial "insensível" e "sem coração"

Publicado em 23 de fevereiro de 2018 às 20:54

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Everaldo, policial militar e bailarino . (Vitor Jubini)

“Como policial protejo outras pessoas e pintando salvo a mim mesmo”. É assim que o soldado Rodrigo Coutinho Martins, policial há 8 anos, explica como é conciliar a carreira militar com a arte. Assim como ele, profissionais acostumados à rotina e à disciplina de um quartel também encontram na atividade artística uma forma de se redescobrir e aliviar o estresse da profissão.

Seja na pintura, na música ou na dança, esses profissionais dão um show de talento e conseguem através da arte desmitificar a figura do policial “insensível” e “sem coração”. “O comportamento das pessoas sempre muda quando dizemos que somos policiais. Isso é legal, porque conseguimos nos integrar mais e fazer mais amizades. É uma forma de mostrar que o policial é um ser humano'', observa o capitão Ramon Quedevez.

“Acredito que 80% da nossa tropa toda, hoje, desempenha alguma atividade extra fora da corporação, seja artística ou ligada à algum esporte ou projeto social. Temos muitos talentos dentro da PM, alguns ainda precisam ser descobertos”, avalia o diretor de comunicação da PM, tenente coronel Marcelo Muniz.

E se a arte ajuda policiais a enfrentarem as durezas do dia a dia, a rotina e o serviço desempenhado por eles também empresta algo para a vida artística. “A disciplina, sem dúvida. Não perco um ensaio e não desmarco nenhum compromisso. Isso a gente leva para a vida, não tem como desvincular”, garante o tenente Marcos Oliveira.

VÁLVULA DE ESCAPE

Rodrigo Coutinho Martins conciliar a carreira militar com a arte. (Divulgação)

Da grana curta e da vontade de comprar um quadro com a figura de um leão, surgiu o artista. Na verdade, a arte sempre esteve presente na vida do soldado Rodrigo Coutinho Martins, de 28 anos. Só faltava a inspiração. As primeiras telas, nascidas à base de tinta óleo, já não agradavam mais. “Vi o quadro e não tinha dinheiro para comprar. Observei bem a técnica, era feito com pregos e linhas. Uns dias depois achei uma madeira jogada na rua e resolvi arriscar. Fiz da minha forma e o resultado ficou legal”, conta.

Rodrigo entrou para a Polícia Militar em 2009 e há três anos ele se dedica a passar para as telas a realidade que enfrenta no dia a dia da profissão. “Trabalhava na região de São Pedro, em Vitória, e vi muitas histórias de violência doméstica. Retratei isso em algumas telas”. De lá para cá, ele aperfeiçoou a técnica e utiliza material reciclável em suas obras. Uma madeira perdida, um pedaço de espelho, pregos soltos, tudo vira arte nas mãos do artista policial, ou seria do policial artista? “O que me define é a arte”, diz.

Rodrigo Coutinho Martins conciliar a carreira militar com a arte. (Divulgação)

Os quadros de Rodrigo já passaram por galerias de arte, órgãos públicos e casas de show. O dinheiro recebido pelos quadros vendidos, é usado para criar outras obras. “Faço pela arte mesmo, é minha válvula de escape da rotina diária. Tira minha ansiedade, tem quadros meus que levam de 300 a 450 pregos. Pregar um por um é terapia”, revela Rodrigo, que já chegou a usar um quilômetro de linha em uma única tela. Hoje, ele se dedica também à fotografia. Outra paixão recém descoberta.

HERANÇA FAMILIAR

Marcos Pereira de Oliveira, policial militar e trombonista. (Bernardo Coutinho)

“É como se você fosse transportado para outro lugar. É assim que sempre enxerguei essa arte com a qual aprendi a conviver desde criança, com incentivo familiar”.

Aos 8 anos de idade, o garoto Marcos Pereira de Oliveira, já ensaiava os primeiros passos no universo musical. Tocava “quase tudo”. Aos 16, veio a paixão pelo trombone. Virou músico profissional. E assim, já se vão mais de 30 anos dedicados à música. Hoje, aos 46, ele é o tenente Marcos, da Polícia Militar, com 25 anos de profissão.

A veia musical é de herança. “Minha família toda é ligada à música. Meu pai foi militar e tocou na banda da PM. Vivo isso desde que nasci”, conta Marcos. Ele, que já tocou com o maestro Maurício de Oliveira por quatro anos, também já dividiu o palco com o cantor Marcelo Ribeiro e bandas conhecidas do público capixaba como Banana Reggae e a Flashback. Agora, Marcos se apresenta com a Banda Show Dance, em bailes de formatura e casamentos.

Aos finais de semana, o tenente divide as obrigações de militar e a regência da banda de música da PM, com os shows da banda que fundou há 10 anos. “Com a polícia, aprendi a ter disciplina para as apresentações e ensaios”, entrega.

ÚNICA NO ESTADO

Glaucia Castilhos, de 45 anos, é a única harpista do Estado. (Bernardo Coutinho)

A música tem o poder de marcar todos os momentos importantes de nossas vidas. Clichê? Pode ser. Mas não dá pra negar. E, pode até parecer estranho, mas foi a música que levou a musicista Glaucia Castilhos, de 45 anos, para a carreira militar. “Sempre gostei de música, desde pequena toquei piano e flauta. Quando soube da oportunidade de entrar para a banda da PM, não pensei duas vezes”, conta. E lá se vão 18 anos de Polícia Militar.

Em meio às aulas em conservatórios e escolas de música, a tenente Glaucia conheceu a harpa e se apaixonou. O primeiro instrumento comprou faz 10 anos e foi ele, que a levou para conhecer e se apresentar em recitais internacionais. Venezuela, Colômbia, Argentina e México estão entre os países pelos quais a única harpista do Estado passou. “Foram momentos inesquecíveis”, define.

De formação clássica, a harpista também flerta com a música popular. No repertório dela não podem faltar ritmos populares como samba e baião. “O meu diferencial não só aqui no Brasil, mas fora dele também, é que não fico só na música erudita. A harpa tem essa característica, mas quando as pessoas ouvem ‘Asa Branca’, por exemplo, elas se emocionam. É um privilégio levar a cultura do meu país para outros lugares”, comemora.

Prova de que a música é tão presente na vida da tenente, é que o marido dela também é músico. “Toca violoncelo na Orquestra Filarmônica do Estado. Quando eu digo que a música decide os rumos da vida, é disso que falo. Todos as portas que se abriram para mim, foram através dela”.

FARDA E ROCK'N'ROLL 

Cristian Félix Tomé, 47 anos, e Ramon Calmon Quedevez, de 41, são colgeas de farda e de banda. (Bernardo Coutinho)

Durante o serviço na Polícia Militar eles são o tenente coronel Tomé e o capitão Quedevez, lotados no Quartel da Batalhão da Polícia Militar, em Vitória, e no Regimento de Polícia Montada, na Serra. Mas nos momentos de folga, Cristian Félix Tomé, 47 anos, e Ramon Calmon Quedevez, de 41, trocam as fardas e armas pela bateria e o baixo. E, junto com mais um talentoso amigo, eles formam a banda Griffo e se apresentam em diversos tipos de eventos, casas de shows e barzinhos do Estado. “Se preciso for, até em velório de sogra a gente vai”, brinca Ramon.

“Sempre gostei de rock. Meu sonho desde moleque foi tocar. Convidei o Tomé para tocar comigo e, em 2011, começamos a nos movimentar para criar a banda", conta Quedevez, que assume o vocal e o baixo da banda.

O rock clássico é o que embala os shows da Griffo. Bandas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Black Sabbath são inspiração, mas eles mandam também Legião Urbana, Capital Inicial e Ira. À frente da bateria, Tomé revela que o namoro com o instrumento começou de forma descarada, no cerimonial que ele possui junto com a esposa.

Cristian Félix Tomé, 47 anos, e Ramon Calmon Quedevez, de 41, são colgeas de farda e de banda. (Bernardo Coutinho)

“Sempre que tinha algum evento e uma banda ia tocar lá, eu sentava na bateria e tentava tirar um som. Minha mulher via aquilo e um dia, me deu uma bateria de presente. Foi uma surpresa maravilhosa”, relata.

A inspiração para a escolha do nome da banda veio da mitologia grega. O Grifo é um ser mitológico com corpo de leão e cabeça e asas de águia. “Ele é o guardião da Terra e permanece nos portões do inferno protegendo o mundo da invasão de demônios. Não deixa de ter uma semelhança com o trabalho que a gente faz”, diz Quedevez.

Sobre se dividir entre duas carreiras completamente diferentes, eles afirmam que tiram o desafio de letra. “É uma forma de fugir do estresse da nossa profissão. Quando estamos no palco, durante as quatro horas de show, nos entregamos e esquecemos das mazelas do dia a dia”, ressalta Tomé.

Entre as apresentações que mais marcaram os dois, está a de um show feito em 2013, na Paróquia de Planalto Serrano, na Serra, com jovens que arrecadavam fundos para participar da Jornada Mundial da Juventude, que aconteceu no Rio de Janeiro. “Foi fantástico! Ver os jovens ali, interagindo conosco foi inesquecível. Depois do show vieram até pedir autógrafo”, entrega Quedevez.

PRECONCEITO

Everaldo, policial militar e bailarino . (Vitor Jubini)

O enredo é poderoso justamente por ser direto ao ponto e mostrar a força desse bailarino que foi capaz de superar a barreira do preconceito para se tornar soldado da Polícia Militar. O começo, como era de se esperar, foi cercado de espanto e ainda desperta a curiosidade. “Eu quis quebrar paradigmas. Sabia que não seria fácil”, diz. E de fato não foi, ele garante isso.

“Ouvi sim alguns comentários depreciativos. Mas, a dificuldade maior foi que não acreditavam que eu, sendo bailarino, tinha preparo psicológico para me tornar um PM. Que por dançar balé, não teria uma postura mais masculina diante da profissão. Força física eu tinha, até porque no balé os ensaios são exaustivos para se chegar à perfeição. O que precisava ser trabalhado era meu emocional”. O curso preparatório, que durou um ano, foi a parte mais difícil. “Eu precisava me encaixar naquele ambiente”, completa.

Foram mais de 20 anos dedicados à dança, do balé clássico ao contemporâneo. E foi a dança que o levou a viajar pelo mundo e conhecer países como Portugal, Itália, França, Espanha e Suíça, de onde saiu para voltar ao Brasil “apenas de férias”.

Everaldo, policial militar e bailarino . (Vitor Jubini)

“Quando cheguei meu irmão me disse que havia saído o edital para o concurso da PM. Me convenceu que seria uma ótima oportunidade. Foi ele, inclusive, que pagou minha inscrição. Pensei: ‘porque não?’. E aqui estou, feliz com minha escolha”, garante o soldado, que encontrou no militarismo uma estabilidade profissional.

A experiência fora do Brasil e a fluência em inglês e francês, fizeram com que Everaldo fosse designado para trabalhar no módulo de Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) da PM, no Morro do Moreno, em Vila Velha. Com pousadas e restaurantes, a região atrai turistas de diversas cidades do país e do exterior.

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Mas, Everaldo afirma que não abandonou o balé completamente, já que a legislação brasileira não permite que militares acumulem outros tipos de cargos. “Dou aulas em alguns projetos de dança, como voluntário, e continuo com os meus ensaios. Um bailarino não deixa de ser bailarino nunca”, sentencia o soldado, que já participou de importantes festivais, garantindo a segunda colocação no Festival de Dança de Joinville, em Santa Catarina – considerado por ele o festival mais importante do mundo –, e, ainda, no Festival Internacional de Dança de Goiânia.

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