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'SUS é precário, mas não devemos piorá-lo', diz desembargador

"SUS é precário, mas não devemos piorá-lo", diz desembargador

Desembargador Fernando Bravin avalia que decisões judiciais em processos de saúde devem beneficiar a coletividade

Publicado em 10 de janeiro de 2018 às 02:17

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O desembargador do Tribunal de Justiça do Estado Fernando Bravin elaborou um estudo sobre processos de saúde que chegaram à segunda instância do Judiciário capixaba entre janeiro de 2014 e setembro de 2017. Concluiu, com números, que a ampla maioria é desfavorável ao poder público. O magistrado defende que a intervenção dos juízes na política pública deve acontecer de maneira a corrigir destinações equivocadas de recursos ou falhas na prestação do serviço, de maneira que o coletivo seja beneficiado. Para ele, decisões judiciais isoladas, voltadas para uma só pessoa, não têm resultado algum na racionalização do problema da judicialização da saúde.

Como vê a judicialização da saúde no Brasil e, especificamente, aqui no Espírito Santo?

Eu vejo com preocupação, porque a carga teórica trazida para sustentar o processo hoje de judicialização da saúde jamais poderia imaginar que os seus conceitos fossem utilizados para uma circunstância como é a judicialização da saúde no Brasil e no Estado do Espírito Santo. O que a gente encontra é a possibilidade de o Poder Judiciário intervir numa situação muito pontual em determinada política pública ou em determinada decisão de um gestor.

Por que para demandas coletivas é diferente?

Porque a demanda de massa é diferente da demanda que a teoria geral do processo sempre estudou: juiz, autor, réu. A demanda de massa não tem essa característica. E o Poder Judiciário no Brasil tem ignorado as externalidades das demandas de massa, que são externalidades negativas, muitas vezes severas a uma determinada comunidade, a uma determinada região. E o Poder Judiciário tem que se debruçar sobre isso também. Tem que dizer: se estou diante de uma demanda de massa, uma demanda que é repetitiva, eu tenho que começar a observar outras externalidades que não aquelas que aparentemente surgem como uma demanda.

Há excesso de demandas pontuais de saúde no Judiciário?

O excesso dentro do Poder Judiciário é uma generalidade. Hoje, nós não temos um conceito que o resultado no Poder Judiciário não seja simplesmente excesso. Se eu quero falar do Poder Judiciário, digo excesso, por vários motivos. O primeiro motivo é seu relativo sucesso após a Constituição de 1988. E o sucesso do Poder Judiciário é sua própria tragédia. Porque quando você abre as portas, com base, por exemplo, na teoria do acesso à Justiça, e não consegue perceber a própria realidade, você diz que o acesso à Justiça é a condição de propor ações. E não é a condição de propor ações. O acesso à Justiça é a condição que eu tenho de dar efetividade, primeiro solucionar e dar efetividade à minha pretensão. E eu posso resolver os meus conflitos de interesses sociais sem procurar o Poder Judiciário. O melhor dos acessos à Justiça é quando eu não preciso do Poder Judiciário e resolvo o meu conflito. Nós pegamos o conceito de acesso à Justiça e o colocamos como aquilo que o Poder Judiciário pode receber de demanda. O que não é verdade. O Poder Judiciário pode entregar bem menos do que aquilo que lhe é exigido. Eu gostaria que nosso Poder Judiciário fosse bem menor. Custasse muito menos. Já pensou se ele fosse metade do que ele é? Significa dizer que praticamos metade dos nossos crimes, que brigamos civilmente a metade do que brigamos.

O que leva a esse excesso na judicialização da saúde?

Dois pontos. Primeiro, a demanda contida. Nós ficamos muito anos limitados a suportar o mau serviço público. E quando o cidadão descobre um caminho que se contrapõe a essa identificação que ele faz do serviço público, que ele encontrou o caminho do Poder Judiciário, ele busca ali a salvação dele. Por outro lado, perigosamente, o magistrado quando se vê num caso desse, a primeira reação dele é 'na minha mão não morre'. Mesmo que ele mate muitos outros, quando tira recurso e impõe determinada decisão. E se você perguntar para ele, 'e se você matar muitos outros?'. 'Eu não mato muitos outros'. Mas ele não imprime dinheiro, ele não cria recursos. O Poder Judiciário não cria recursos. Ele pode dar decisões inteligentes que a médio e longo prazo você reinventa a mobilidade, ou seja, a gestão desse recurso. Mas ele não cria. Então, o impacto, a meu ver, é sempre negativo. Se eu defiro uma liminar de internação, o impacto é negativo. Se eu defiro uma liminar de medicamento de alto custo, o impacto é negativo. Ele nunca é positivo. Mas como assim, mas ele vai salvar aquela vida? Não. Ele vai resolver o problema tal cuja externalidade que ele provoca é pior do que o resultado imediato. O alento não pode ser desconsiderado. O alento é resolver aquele caso concreto. E qual é a tragédia? A tragédia é que eu tiro da universalização, do bolo de todos, e coloco na individualização. Não tem coisa pior.

E as demandas são semelhantes?

Nós temos aqui material cirúrgico, fornecimento de medicamento, tratamento de fisioterapia, internação compulsória de dependentes químicos, realização de cirurgia, tratamento em UTI, consultas médicas.... e o que a gente vê, muitas vezes, não é o tratamento em si. É a vontade de burlar a fila. Aí tem a liminar e vai lá e se antecipa em relação a todo o sistema, que é um sistema precário. A gente tem que reconhecer que ele não é um sistema que funciona dentro da expectativa do cidadão. Mas isso não quer dizer que a gente deva piorá-lo.

Dentro do estudo, o senhor conseguiu identificar de onde vêm as demandas? Se da rede pública, se da rede particular...

Para se ter uma ideia, o Poder Judiciário trata isso como irrelevante. Tanto que nos julgados a gente nem consegue identificar. A gente consegue ver que nos processos que chegam ao gabinete sempre tem um laudo particular envolvido. Isso é verdade. A constância de ter um laudo particular envolvido na demanda contra a saúde é comum. Isso não quer dizer que esse laudo não seja ratificado por algum outro elemento. Mas sempre nós temos a coincidência em torno de uma demanda judicial ter uma manifestação de um médico particular. Isso é verdade. Mas minha pesquisa não entrou nisso.

Há desconhecimento do médico que atua no particular sobre a lista do SUS, sobre o que é oferecido e o que não é?

Não existe desconhecimento. Não creio em desconhecimento. Creio que a parcela que busca o Poder Judiciário ainda é uma parcela privilegiada em relação ao acesso à Justiça. A parcela carente, que precisa da saúde, sequer tem acesso ao Poder Judiciário. Toda vez que damos uma liminar estamos contribuindo para um resultado individual muito pequeno com relação ao universo que necessita dos mesmo serviços. Minha crítica é que o sistema que está inserida a decisão não permite a solução de todo o contexto. É pior que enxugar gelo. É enxugar gelo e não guardar a água. Me parece que os gestores perceberam que não tem outra saída a não ser melhorar o sistema de acesso à saúde. Esse é o único impacto positivo que as decisões de massa tem a dar à sociedade.

E qual o resultado se o foco forem as decisões individuais?

Se jogar tudo na individualização, não tem resultado nenhum. Não traz resultado. Principalmente quando o Poder Judiciário manda, por exemplo, internar em UTI de hospital particular. Se quer criar um grande desnivelamento entre aquele que recebe seu benefício na universalização e na individualização por meio do Judiciário, esse é o pior dos mundos. Agride fortemente o sistema. Dizer que não agride é fechar os olhos para a realidade.

E como atuar nas decisões que envolvem a massa?

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Tem um caso concreto aqui no tribunal, relacionado a uma prefeitura, que é de obrigatoriedade de implementação coletiva de política pública de saúde. É sobre o serviço em um posto de saúde. O acórdão diz que, no prazo de seis meses, a prefeitura tem que abrir licitação e melhorar o sistema. Nos embargos de declaração, a prefeitura diz que não tem tempo nem recursos. E o relator, então, fala para tirar o recurso da publicidade e realocar para a saúde. É um recado. A gestão, o poder público no Brasil, é muito ruim. É notadamente ruim. Não é gestão positiva a ponto de os recursos serem bem empregados. É culpa do gestor? Não. O sistema é carente. Leva anos para se depurar. Talvez o Judiciário deva ter mais decisões nesse sentido para provocar o debate de que existem muitos recursos que tem que deixar de ser destinados a determinadas rubricas. É melhor uma decisão realocando recursos do mau gestor, do que decisão tirando do pequeno que está dentro da universalidade para colocar no pequeno individual.

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