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Boatos que mudaram o curso da história brasileira

Boatos que mudaram o curso da história brasileira

Criar notícia falsa com interesse político não é novidade no país. Prisão de militares, cartas com ofensas e comunismo alimentaram o imaginário

Publicado em 22 de julho de 2018 às 14:46

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O fenômeno das notícias falsas ardilosamente criadas e disseminadas, sobretudo via internet, aparece como uma ameaça ao equilíbrio das próximas eleições brasileiras. Mas muito antes de o termo fake news e a própria internet serem criados, boatos e mentiras já marcavam a disputa política. Ao longo da História do Brasil, informações falsas serviram para derrubar a monarquia, eleger ou derrotar candidatos a presidente e para aplicar golpes de Estado.

Obviamente, os impressos da época e o rádio não alcançavam multidões com a mesma velocidade da internet. Por outro lado, também era prejudicada a velocidade de reação à desinformação. É verdade que ainda hoje, nos rincões brasileiros, a boataria e os informativos apócrifos continuam circulando, mas em alguns momentos eles foram determinantes para algumas das principais decisões do país.

O caso das cartas falsas de Artur Bernardes, às vésperas da eleição de 1922, é emblemático. Seria apenas mais um capítulo do folclore político nacional não fossem as revoltas tenentistas que desestabilizariam todo o governo de Bernardes.

Antes do pleito, surgiram no jornal “Correio da Manhã”, do Rio de Janeiro, cartas atribuídas ao governista Bernardes, com a assinatura supostamente dele e com o timbre do governo de Minas Gerais, que ele comandava à época. O texto trazia duras críticas aos militares e ao oposicionista Nilo Peçanha, que Bernardes enfrentaria na disputa à Presidência.

As cartas surgiram em período de grande instabilidade política entre as oligarquias de São Paulo e de Minas. Outros jornais repercutiram e as supostas críticas do líder mineiro ecoaram nos parlamentos. Apesar da crise, Bernardes ganhou de Peçanha em 1922.

Uma ampla comissão se dedicou a apurar o caso. Mas só depois do pleito os falsificadores assumiram o caráter político da fraude. Mesmo assim, a crise com os militares não arrefeceu. O movimento tenentista e a coluna Prestes manifestavam insatisfação com a República Velha e com o modo de se fazer política.

VERMELHOS

A “ameaça comunista” como justificativa para alterações na ordem política e social do país também não passou de um boato que serviu a duas ditaduras. Primeiro, a descoberta pelo governo Vargas do Plano Cohen, em 1937, o que seria uma ameaça de tomar o poder pelos vermelhos, jamais comprovada. Entrou para a História como um documento forjado pelo militar Mourão Filho, o mesmo que colocaria os tanques na rua para tomar o poder em 1964.

Quase três décadas depois, a justificativa para o golpe era a mesma, a existência de um grande plano secreto para entregar o país aos comunistas. As reformas de base propostas por João Goulart ao Brasil, compatíveis com pensamentos de esquerda, também fizeram com que ele fosse taxado de comunista conspirador.

“O Plano Cohen e João Goulart comunista são coisas com nenhuma base concreta. Mas, décadas depois, continuam acreditando nisso, que não há comprovação factual. As fake news são aquilo que motiva e o que justifica é pós-verdade. A mentira que acaba sendo manipulada para defender interesses de determinados grupos”, afirmou o historiador Pedro Ernesto Fagundes, professor da Ufes.

Professor da UVV e mestre em História das Relações Políticas, Rafael Simões lembra que a boataria não é exclusividade brasileira. “Sempre existiu, mesmo antes da Revolução Francesa. Sempre foi uma arma utilizada na vida política e econômica. Agora, ganha ares epidêmicos porque o acesso à informação e à tecnologia é amplíssimo”, disse.

CINCO PODEROSOS BOATOS QUE ALTERARAM A HISTÓRIA DO BRASIL

1889 - República

O movimento republicano no Brasil tinha ganhado força havia duas décadas. Havia tensão entre os monarcas, liderados por Dom Pedro II e os republicanos, que tinham no marechal Deodoro da Fonseca a principal referência. Às vésperas da Proclamação da República, passou a correr nas ruas do Rio de Janeiro um boato dado como decisivo para o fim da monarquia. Republicanos plantaram a informação de que o imperador mandara prender militares republicanos, o que jamais se confirmou. A informação falsa inflamou militares, que depuseram o imperador e proclamaram a República, no dia 15 de novembro. 

1921 - Cartas ofensivas

Foram publicadas no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, cartas com conteúdo considerado ofensivo a militares e a Nilo Peçanha. Os textos eram atribuídos a Artur Bernardes, o então presidente do Estado de Minas Gerais, que seria candidato a presidente no ano seguinte. Mesmo assim, Bernardes foi eleito na disputa contra Peçanha. Mas o episódio das cartas fez com que ele enfrentasse uma crise durante todo o seu governo, até 1926. Precisou lidar com as revoltas tenentistas. Ficou provado que as cartas foram escritas com falsificação de assinaturas e do timbre do governo de Minas Gerais.

1937 - Plano Cohen

Com o fim da República Velha, o Brasil vivia a Era Vargas desde 1930. Haveria eleição presidencial em 1938, mas Getúlio Vargas não queria deixar o poder. Estava disposto a aplicar um golpe de Estado. No dia 30 de setembro de 1937, foi tornado público pelo governo, por meio de programa de rádio, o Plano Cohen, que passou para a história como uma fraude. Consistia em um suposto plano de comunistas, descoberto pelo governo, para tomar o poder. Entre as estratégias estaria tornar reféns ministros de Estado e da Corte Suprema da Justiça. Dias depois, Getúlio iniciou o Estado Novo e as eleições foram suspensas.

1945 - “Marmiteiros”

O empresário Hugo Borghi era uma das principais cabeças por trás do queremismo, movimento que pretendia manter Getúlio Vargas no poder. O candidato da oposição era o brigadeiro Eduardo Gomes, que em um comício teria dito dispensar votos da “malta de desocupados”. Era referência ao eleitorado de Vargas e do general Gaspar Dutra, a quem Getúlio emprestara apoio naquela eleição. Borghi espalhou por todos os cantos que Gomes dissera não querer o voto dos “marmiteiros”, a população de baixa renda. O brigadeiro demorou para fazer o desmentido. Foi um prejuízo a Eduardo Gomes e ajudou Gaspar Dutra a vencer.

1964 - Ameaça comunista

Uma das justificativas dos militares para aplicar o Golpe de 1964 era livrar o Brasil da “ameaça comunista” que, na visão deles, pairava sobre o país. Jamais se comprovou que o Brasil de fato estava supostamente pronto para ser entregue a forças militares de Cuba, China ou União Soviética. O então presidente João Goulart foi rotulado como um comunista a serviço de países considerados inimigos, o que também não era verdade. Coube ao general Olímpio Mourão Filho colocar os tanques na rua, no caminho de Juiz de Fora (MG) ao Rio de Janeiro. Mourão também esteve por trás do Plano Cohen, na década de 1930.

Fonte: Atlas Histórico do Brasil, da FGV; livro “Getúlio (1945-1954)”, de Lira Neto; e professores entrevistados.

Assassinatos e mentiras são parte da guerra política

A história carrega exemplos de como mentiras e boatos plantados permearam e permeiam as brigas políticas, mas não só. Guerras e assassinatos costumavam definir quem ganharia ou perderia poder na História do Mundo, desde que os primeiros sistemas de poder e de luta política passaram a ser organizados. É o que destaca o historiador Estilaque Ferreira dos Santos.

“São ferramentas das quais até os faraós se utilizaram. Já era pertinente a utilização desses artifícios políticos porque já tinha a política. São coisas intrínsecas a ela”, frisou.

Estilaque Ferreira dos Santos, historiador . (Edson Chagas)

O vale tudo pelo poder está, de certa maneira, eternizado pelo teórico da política moderna Nicolau Maquiavel. “A política, para ele, era o cálculo político, de danos aos adversários, de como causar danos em ocasiões propícias. Era regida por instrumentos de artimanha, um jogo desenfreado de poder em que tudo vale, da mentira ao assassinato”, destacou Estilaque.

Para o historiador Pedro Ernesto Fagundes, um marco das artimanhas está na Alemanha nazista. Um incêndio do Parlamento alemão, em 1934, alimentou a preocupação com a “ameaça comunista”, o que deu protagonismo a um personagem que assumira havia poucas semanas o cargo de chanceler, Adolf Hitler.

“Era o poder a qualquer custo, consagrado na Alemanha nazista. O incêndio do Congresso acabou por fechá-lo e dar plenos poderes a Hitler. Além disso, a propaganda nazista forjava situações e fatos para justificar operações militares”, afirmou.

Com seu ministério da propaganda, Hitler profissionalizou uma “verdade do Estado” e, recorrendo ao seu carisma para cultivar um sentimento nacionalista, passou a conquistar “alemães de bem” com suas ideias genocidas.

Brasil, hoje

É verdade que as disputas políticas brasileiras não são, em sua maioria, definidas com guerras e mortes. É necessário destacar, no entanto, que uma combativa vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco (PSOL), foi assassinada. As suspeitas apontam que ela morreu por conta do mandato que exercia e as autoridades trabalham com a hipótese de crime político.

Além disso, um acampamento criado para manifestar apoio ao ex-presidente Lula (PT) foi alvo de tiros. Por mais que o petista seja um condenado pela Justiça por crimes graves, o acampamento é uma manifestação pacífica e protegida pelo direito à liberdade de expressão e manifestação.

“Esse tipo de política prevalece sobretudo nos momentos de maior acirramento. Quanto mais a disputa política é acirrada, maior é a utilização de elementos como esse. No nosso caso, temos um conflito político desenfreado. Como está ‘valendo tudo’, as pessoas passam a agir de maneira inconcebível do ponto de vista moral”, acrescentou Estilaque.

Eleições

Apesar de todos os avanços fiscalizatórios e tecnológicos para que as eleições transcorrem dentro de parâmetros cívicos, condutas questionáveis do ponto de vista moral seguem frequentes. O cientista político Eduardo Pignaton observa que boatos, mentiras e panfletos apócrifos continuam corriqueiros, sobretudo em disputas políticas acirradas.

“Quanto mais polarizada a eleição, mais aquela metade que está apoiando um candidato está propensa a reproduzir boatos. Talvez, as fake news sejam a versão digital da técnica de boatos. São o boato da era digital. E boatos têm tido papel importante nas eleições modernas”, opinou.

Análise: Fake news desde a Grécia antiga

O conceito de fake news não se aplica exatamente ao passado mais remoto da História porque os meios tecnológicos não estavam presentes em outros momentos. As fake news são notícias falsas que se espalham rapidamente. Os meios eletrônicos de hoje favorecem isso. Mas boatos, invenções e mentiras vêm desde a época do Péricles (estadista grego, personalidade do século V a.C.). Há alguns exemplos de invenções, como o Plano Cohen, no governo Vargas. Mas ficou muito restrito a grupos políticos mais envolvidos com a política tradicional. Não circulou como as fake news circulam hoje. Quando se organizam sistemas de poder, a luta política logo se estabelece. É uma coisa intrínseca à política, principalmente nos momentos de disputas mais acirradas. Na política romana, até o assassínio era coisa comum. Júlio César, por exemplo, foi traído, assassinado pelo próprio filho.

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Estilaque Ferreira dos Santos é Historiador

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