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O X da questão da Segurança Pública

O X da questão da Segurança Pública

Entrevistamos duas referências nacionais na análise de um dos temas que mais mexem com o eleitor brasileiro, cada vez mais assustado com a insegurança

Publicado em 18 de agosto de 2018 às 21:05

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Os especialistas em segurança pública Renato Sérgio de Lima e José Luiz Ratton expõe possíveis caminhos para conter a violência. (Divulgação/Leo Mota)

Do porte de armas à legalização das drogas, as questões mais sensíveis de segurança pública podem provocar discussões acaloradas, principalmente neste período eleitoral. São os problemas que mais exigem propostas que prezem por boas doses de firmeza e sensatez, mas têm criado também um ambiente de extremismos. Convidamos dois especialistas na formulação de políticas públicas de combate à violência para expor propostas que sejam de fato capazes de reduzir os índices alarmantes do país: em 2017, o Brasil registrou 63.880 mortes violentas, o maior número de homicídios da história, segundo o 12º Anuário de Segurança Pública, divulgado no último dia 9. Renato Sérgio de Lima e José Luiz Ratton responderam a sete perguntas que envolvem desde a conjuntura que abre espaço para a violência até as possíveis saídas para o problema. Ambos apontam, por exemplo, que a criação do Ministério de Segurança Pública e do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) é positiva, mas não terá grande impacto sem ações de fato integradas entre governo, Estados e municípios, sem recursos bem definidos e sem diálogo amplo com a sociedade.

Os entrevistados

Renato Sérgio de Lima é diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pós-doutor pela Unicamp e pela Universidade de Cambridge (Inglaterra) e autor do livro “Entre Palavras e Números: Violência, Democracia e Segurança Pública no Brasil”

José Luiz Ratton é coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco, pós-doutor em Sociologia da Violência pelo Centro de Estudos e Documentação Latino-Americanos (Holanda) e coautor do livro “Crime, Polícia e Justiça no Brasil”

A entrevista

Mais de 60 mil pessoas perdem a vida de forma violenta no Brasil por ano. Os números são alarmantes. Quais as principais causas do problema e como enfrentá-lo?

RENATO SÉRGIO DE LIMA: A violência no Brasil é multicausal. Precisamos considerar as questões históricas e culturais que fazem com que os patamares de violência sejam tão altos. Não podemos esquecer que há 130 anos tínhamos escravidão no país e que, ao longo do século 20, tivemos uma série de conflitos violentos, além de uma ditadura militar que perdurou 20 anos. Nosso processo de redemocratização é muito recente, e a Constituição de 88 foi um marco, pois trouxe o conceito da segurança como um direito universal dos brasileiros. Nesse sentido, entramos em um segundo ponto, que é a necessidade de modernizar os mecanismos que ainda utilizamos na segurança pública. Alguns deles são da época do Império, a exemplo da figura jurídica dos inquéritos policiais, que é de 1871. E mesmo a legislação que regula as polícias é anterior à Constituição de 88, pois data de 1983. Como esperar cumprir o que está na Constituição se a lógica que ainda predomina no sistema de segurança é do século 19, 20? Por fim, mas não menos importante, as políticas públicas de segurança devem ser coordenadas e abranger medidas de prevenção e combate à criminalidade.

JOSÉ LUIZ RATTON: São várias as causas da violência no país, que combinam-se para compor a situação trágica que vivemos: desigualdade social, padrões culturais arcaicos de resolução privada e violenta de conflitos, presença rarefeita do Estado em áreas violentas, enorme disponibilidade de armas de fogo em circulação, ausência de políticas de prevenção da violência sistêmicas, políticas de drogas equivocadas, seletividade do sistema de justiça, entre outros fatores.

A criação do Ministério da Segurança Pública e do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) pode ajudar a mudar essa realidade?

RENATO SÉRGIO DE LIMA: A criação do SUSP é um passo positivo, mas só terá impacto real se sair do papel. A ideia inicial, de 2002, era realizar uma reforma profunda na relação entre os entes federativos (União, Estados e municípios) e republicanos (Executivo, Legislativo e Judiciário), o que não foi amplamente contemplado no projeto aprovado. Ainda assim, o SUSP coloca o governo federal como o agente que dará as diretrizes para maior coordenação das políticas públicas nessa área. Isso não significa tirar a autonomia dos Estados e dos municípios e sim dar um norte para que todos caminhem na mesma direção. Atualmente no Brasil temos mais de mil órgãos e instituições que lidam de alguma forma com o tema da segurança e é fundamental que as ações estejam integrados. Quanto aos recursos destinados para a segurança pública, há uma ilusão em dizer que nos falta apenas boa gestão. Para se ter uma ideia, segundo dados divulgados recentemente no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil gastou R$ 84,7 bilhões nessa área em 2017. Em média, essas despesas representam cerca de 2,5% do PIB nacional, enquanto a média dos países membros da OCDE é de 4,5%. Portanto, nosso orçamento está aquém do que deveria e as despesas mal cobrem os custos básicos do sistema. O orçamento precisa estar adequado ao tamanho do desafio para que dê conta de manter a estrutura, remunerar adequadamente as polícias e possibilitar investimentos urgentes em inteligência e informação.

JOSÉ LUIZ RATTON: A criação do Ministério da Segurança Pública poderia ser um sinal de que a atual gestão federal daria prioridade ao tema. Mas não parece ser o caso. Falta capacidade para coordenar uma Política Nacional de Segurança Publica digna do nome, com prioridades, recursos, definição de papéis, diálogo com a sociedade. Falta orçamento, falta governança integrada, falta inteligência policial e não policial, falta institucionalidade, falta muito.

Entre os homicídios registrados de 2005 a 2015 no Brasil, mais de 70% das vítimas eram negras. Como enfrentar essa realidade específica?

RENATO SÉRGIO DE LIMA: O Atlas da Violência, produzido pelo Ipea em conjunto com o FBSP, tem mostrado ano após ano que a violência letal é seletiva: ela atinge em especial homens jovens negros e pobres. O primeiro passo é reconhecer que o país tem essa imensa desigualdade racial e que Estado tem permitido e contribuído para a exterminação da juventude negra. É primordial investir em políticas públicas de prevenção e focalizadas nos territórios onde essa população está mais vulnerável.

JOSÉ LUIZ RATTON: Enfrentando o racismo institucional de forma concreta, reorganizando cursos de formação policial, criando mecanismos de punição de policiais que matam de forma repetida e de acompanhamento psicológico real de policiais envolvidos em situação de mortes violentas.

O combate à violência contra a mulher já contou com avanços na legislação, como a Lei Maria da Penha, mas ainda é um desafio. Em que o Brasil precisa evoluir?

RENATO SÉRGIO DE LIMA: O Brasil tem números inaceitáveis de violência contra a mulher. A cada dez minutos um estupro é registrado no país e, considerando a literatura internacional sobre o tema, sabemos que esse número representa em torno de apenas 10% dos casos. No ano passado foram mais de 220 mil casos de agressão doméstica. A violência de gênero é um problema público que precisa ser interrompido, mas temos observado uma incapacidade do Estado brasileiro de lidar com essa questão. Um bom começo seria treinar os agentes de segurança para garantir acolhimento às vítimas, por isso temos defendido a adoção de protocolos específicos para casos de violência de gênero. Esse é um tema de extrema relevância e que deve ser cobrado dos candidatos nessas eleições.

JOSÉ LUIZ RATTON: É necessária uma política nacional de redução da violência contra a mulher, que não existe.

A violência urbana e a sensação de medo fazem crescer a demanda de uma parcela da população pela revogação do Estatuto do Desarmamento. A restrição ao porte de arma deve ser revista?

RENATO SÉRGIO DE LIMA: As armas de fogo não são proibidas no país. O que existe é uma exigência de controle para a liberação do porte, que pode ser obtido por qualquer pessoa que atenda aos requisitos da legislação. O grande problema é a falta de controle, que está diretamente ligada à falta de coordenação entre a Polícia Federal e o Exército. Dados do Anuário mostram que 94% das 119.484 armas apreendidas no país em 2018 sequer foram catalogadas no Sinarm, e que 13.782 foram extraviadas ou roubadas, o que equivale a 11,5% das apreensões do ano. Diante desse quadro, seria mais produtivo discutir a necessidade de fortalecer o controle.

JOSÉ LUIZ RATTON: O Estatuto do Desarmamento é uma das mais importantes estratégias de redução das mortes violentas no Brasil. Não é possível reduzir os homicídios no país sem reduzir o estoque e a disponibilidade de armas de fogo.

A polícia brasileira é a que mais mata e a que mais morre no mundo, segundo o Atlas da Violência. Como reduzir esses números e aumentar a efetividade do policiamento?

RENATO SÉRGIO DE LIMA: O Brasil opta por uma política de confronto na área da Segurança Pública, que faz vítimas de ambos os lados, em grande quantidade. Em 2012, havia seis mortes por dia no país decorrentes de intervenções policiais e hoje já chegamos a 14. Em São Paulo, o número de mortos em confronto com a polícia representa quase um terço do total registrado na cidade. No Rio, mata-se mais do que três vezes a média nacional, e não por acaso é também o local onde mais policiais morrem. Só vamos mudar essa realidade com investimentos em inteligência. Caso contrário, o modelo atual de confronto vai gerar cada vez mais vítimas, com resultados devastadores para os dois lados.

JOSÉ LUIZ RATTON: A polícia brasileira tem uma formação histórica de ser uma polícia do Estado e não da sociedade. Efetivamente é preciso punir policiais que matam, fortalecer corregedorias, criar ouvidorias independentes, alterar a formação policial, garantir que Ministério Público exerça de fato o controle externo da atividade policial.

Legalizar as drogas reduz os índices de violência?

RENATO SÉRGIO DE LIMA: Se você pensar que a legalização das drogas diminui os lucros das organizações criminosas, sim, é uma opção que precisa ser avaliada. Porém, está claro que o crime organizado buscará outras fontes de financiamento a partir do momento em que a atividade deixar de ser ilegal. Temos que ter em mente que o mais importante para combater esses grupos é identificar onde está o dinheiro que financia suas atividades, pois só assim haverá condições de enfrenta-los com mais eficácia.

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JOSÉ LUIZ RATTON: Legalizar as drogas é fundamental para reduzir a violência na América Latina e no Brasil. A questão das drogas deve ser tratada em termos de saúde pública e de educação. Não deve ser a única estratégia, obviamente. Nem acabará com a violência de forma milagrosa. Mas seguramente é uma iniciativa fundamental para o controle da violência em um país tão desigual, onde a guerra às drogas, além de ineficiente, é uma forma de guerra aos pobres.

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