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'Doutrinação sempre existiu. A discussão é como se evita', diz ex-ministra

"Doutrinação sempre existiu. A discussão é como se evita", diz ex-ministra

Ex-ministra do governo FHC diz que é preciso uma formação que estimule o pensamento dos alunos. Ela defende ainda que o ensino universitário deveria ser para quem precisa dele ou deseja fazê-lo

Publicado em 10 de fevereiro de 2019 às 00:50

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É difícil definir se causa ou consequência do acirramento político dos últimos tempos, mas o fato é que anda cotada como problema da mais alta relevância na educação brasileira uma suposta doutrinação comunista velada nas salas de aula, capaz de corromper crianças. Grupos têm trabalhado para apontar essa ameaça como urgente mesmo nas escolas onde falta o mais elementar. Celulares e redes sociais passaram a registrar frases descontextualizadas de professores mal remunerados, em vez de mirar os sinais do mau uso dos recursos públicos e da falta de infraestrutura.

Nessa seara, a diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, Claudia Costin, atesta: de fato, existe certa doutrinação nas escolas. Mas esse não é um tema atual, tampouco restrito a um único viés. 

Mais urgente do que apontar responsáveis e denunciar desvios, a especialista defende que é necessário encontrar maneiras de evitá-los. “Não acho que seja filmando professores em sala.”

Nesta entrevista, Claudia, que foi ministra da Administração e Reforma no governo de Fernando Henrique Cardoso comenta a polêmica declaração do ministro da Educação do governo

Bolsonaro, Ricardo Vélez. Ele afirmou que a “ideia de universidade para todos não existe”. Para ela, faltam alunos de nível técnico e não são todos os que precisam ou desejam ir à universidade.

Claudia também avalia outra “polêmica” declaração do ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes. O ex-astronauta ousou confirmar que a Terra é redonda, frustrando terraplanistas que insistem em divergir de dados científicos básicos.

O ministro Marcos Pontes precisou dizer recentemente que o planeta é redondo e orbita o Sol. Esse tema está difundido na internet. Devemos nos preocupar ou será essa uma etapa necessária para a criação de uma maturidade futura?

Acho muito preocupante quando as pessoas começam a negar a ciência e a achar que as notícias falsas podem substituir pesquisas sérias e evidências científicas. Hoje, com o estágio do conhecimento que temos, sabemos algumas coisas, não sabemos ainda muitas mais. O sistema de crenças pode ser interessante dentro de uma religião pessoal, mas não dentro das coisas do Estado, não dentro das políticas públicas. Ainda bem que o ministro é um cientista preparado. Ele falou para não virem dizer que a Terra não é redonda. Estamos ouvindo isso numa frequência que não deveríamos estar escutando.

Como podemos superar?

Primeiro, é separar a visão política de cada um daquilo que vai nortear as políticas de Estado, a construção de futuro do país, do que deve acontecer na política educacional. E quem tem uma visão mais avançada das conquistas que a humanidade já teve e daquelas que ainda tem que alcançar precisa entrar nisso.

A senhora usa as redes sociais para compartilhar informações sobre educação, ciência e tecnologia para quase 80 mil pessoas. Já teve a experiência de internautas retrucarem os dados científicos?

Postei uma notícia sobre o que estava acontecendo no Malaui, onde há surto de catapora. Aquilo pode nos trazer uma visão do que seria do país se a vacina não fosse usada por aqui. Apareceram questionando a eficácia das vacinas, dizendo que são invenções da indústria farmacêutica.

Para a senhora, isso acontece por falta de um processo educacional crítico e decente ou por dúvida das pessoas nas instituições, de forma geral?

Tem um uso político dessas pessoas. Elas estão sendo usadas por líderes políticos que acham que, ao estimularem uma visão cheia de preconceitos e de visões mágicas, não se discute aquilo que realmente interessa ao país. Há um livro incrível chamado Road to Unfreedom (Estrada para a Não Liberdade, em tradução livre), de Timothy Snyder, que mostra como em outros contextos, como na Rússia, jogou-se com coisas parecidas para deixar de discutir o que era verdadeiro.

Também há um movimento que prefere acreditar em informações falsas, em detrimento do que é rigorosamente produzido pela imprensa profissional. Como é possível corrigir essa distorção?

A primeira coisa, para médio e longo prazo, é oferecer uma educação diferente, que ensine a pensar. Tem se discutido evitar doutrinação. Mas isso sempre existiu em escolas, seja a religiosa, seja de direita ou seja de esquerda. O que emancipa um ser humano e o torna apto a ter relação informada com a sociedade não é a doutrinação. É um processo de ensino que o leve a pensar criticamente, autonomamente. É aprender a se informar. Existe, na Inglaterra, por exemplo, um curso oferecido no ensino médio de letramento midiático. É aprender a ler jornal, aprender a ir nas redes sociais e separar hipótese e verdade, notícia falsa do que procede.

A discussão sobre o projeto Escola sem Partido tende a voltar à pauta. A senhora acha bom um país com os problemas educacionais que temos debater esse tipo de proposta?

Debater sempre é bom. Não concordo com o Escola Sem Partido. Doutrinação sempre existiu. A discussão é como se evita. Não acho que seja filmando professores em sala de aula. Um percentual mínimo dos alunos desejam ser professores. Imagine se começa a haver uma caça às bruxas, como houve na Alemanha nazista. Imagine vereadores entrando em escolas. Isso desestimularia os professores, que, em sua maioria, são profissionais extremamente dedicados. Para evitar a doutrinação, tem que haver uma formação inicial de professores muito mais adequada, que os prepara a ensinar os alunos a pensar. Até porque o aluno decorar a minha visão de mundo não é formar uma pessoa que vai se tornar um bom cidadão.

Gostaria de insistir nesse tema de a doutrinação sempre ter existido. Ela sempre existiu sendo mais de esquerda, de direita ou religiosa? Não é exclusividade de um único viés?

Vamos falar da Primeira Guerra Mundial, que está mais distante. Se você estuda a história daqueles anos, vê que os professores eram incitados pelos governos alemão, francês e inglês a não só falarem mal do país vizinho que estava no outro acordo de países, como também a irem como voluntários e a enviarem crianças para lutar contra o país vizinho que buscava acusar das maiores barbaridades. Na Segunda Guerra, isso aconteceu novamente. A minha mãe era húngara. Ela lembra que, nas aulas de História, os professores diziam que os generais romenos usavam calcinha de mulher. Essa ideia de doutrinação sempre existiu. Como combater? Certamente, não é fazendo filme, mas mostrando que professor é muito mais eficaz quando ele ensina a pensar do que convertendo o aluno para a sua verdade.

O ministro da Educação fez uma polêmica declaração sobre o acesso ao ensino superior, que não existe a ideia de universidade para todos. A senhora acha que o país deve buscar graduar o maior número possível de pessoas?

O ministro quis colocar uma coisa e acabou tocando num assunto que não ficou claro. O que ele disse é que não devemos buscar universidade para todos, o que é verdade. Não devemos buscar universidade para todos. Devemos buscar para todos os que desejam. Mas, ao falar disso, ele acabou levantando a questão de que o Brasil tem gente demais querendo entrar na universidade, e não tem no ensino técnico. Na verdade, temos falta das duas coisas. Temos pouca gente que vai para o ensino técnico, mas temos pouca gente com ensino universitário. Entre os jovens com entre 25 e 34 anos, só 18% têm ensino universitário. Em Portugal, são 34%. Na Coreia do Sul, 70%. A Coreia tem um sistema interessante que permite ficar cinco anos no técnico e depois ir para o superior. Deveríamos ter mais pessoas no técnico, bem formados, com visão moderna, que saibam se atualizar na medida da evolução das máquinas. Mas precisamos ter também mais universitários. Apesar de termos avançado nos últimos anos, estamos muito atrás da maior parte dos países desenvolvidos. E vincular a oferta de cursos técnicos e universitários à necessidade.

É não trabalhar para ter universidade para todos. Mas para aqueles que quiserem.

A universidade para todos deveria ser para todos os que desejam. Não é todo mundo que precisa desejar ir para a universidade. Para que isso aconteça, temos que melhorar o ensino básico e também olhar para o ensino técnico. Outra coisa é evitar que a escola técnica tenha um exame que seleciona os melhores alunos da rede pública para que tenham o melhor ensino público, de graça, para depois irem para uma área completamente diferente da que estudaram no técnico. Tem uma prova dificílima para entrar na escola técnica. Os melhores alunos vão para a técnica, o que não é errado do ponto de vista deles, mas é errado do ponto de vista da política pública. A seleção de alunos para a escola técnica precisa ser repensada. Precisamos de alunos que querem ser técnicos, que querem trabalhar em áreas que o país precisa.

A senhora considera que há certo preconceito com o ensino técnico?

Tem, sim. É um pouco do preconceito com o trabalho que existe no Brasil, dada a escravatura e uma série de outras coisas. Mas se formar para uma profissão deveria ser uma coisa muito interessante. Basta ver o que tem na Fatec (São Paulo), que forma técnicos e tecnólogos. Há alta taxa de empregabilidade.

Fala-se bastante de modelos de escolas militares como garantia de bons resultados.

Precisamos de professores. Para isso, precisamos melhorar o salário. Outra coisa é ter uma formação mais profissionalizante nas universidades. Hoje, os cursos de pedagogia são excessivamente teóricos e não preparam para o chão da escola. A Finlândia atrai os 25% melhores alunos do ensino médio para as faculdade de Educação. No Brasil, são os 25% mais fracos. Em terceiro, é usar melhor o um terço do tempo que o professor tem para a atividade extra classe. Algumas escolas militares são melhores que as públicas, e não porque são militares. São melhores porque têm prova para entrar, porque recebem jovens de famílias militares, que têm uma disciplina, e podem escolher os professores.

E quanto às universidades, também é necessário repensá-las?

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Também. Elas tem que se conectar mais com o século XXI. Muitas universidades não formam para o século em que a gente vive e estão desconectadas das demandas da sociedade. O mundo do trabalho é grande e as universidades, sem generalizar, não acompanham. Algumas poucas, como Unicamp, USP e as PUCs estão conseguindo.

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