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Criação de leis para punição: criminalizar não é o fim para um problema

Criação de leis para punição: criminalizar não é o fim para um problema

Especialistas veem com ressalvas a criação de leis para punições, mas apontam para necessidade em alguns casos

Publicado em 11 de março de 2019 às 00:43

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Congresso Nacional, que abriga os plenários do Senado (à esquerda) e da Câmara (à direita): poder de criar leis. (Pedro França/Agência Senado)

O julgamento das ações que podem decidir se a homofobia deve se tornar crime no Brasil, iniciado no mês passado no Supremo Tribunal Federal (STF), trouxe à tona o questionamento sobre quando é necessário ou não que uma conduta seja criminalizada.

Especialistas ponderam que, embora a criação de uma lei específica tenha uma importância cultural e efetiva para proteger uma determinada população, buscar o sistema punitivo para a proteção de direitos não pode continuar sendo a única frente adotada pelo poder público.

A produção de leis penais pelo Congresso Nacional – que é quem tem a competência para tanto – vem em ritmo acelerado. Em 2015, o jurista Luiz Flávio Gomes, hoje deputado federal de São Paulo pelo PSB, contabilizou a existência de 150 novas leis criadas desde 1940, quando foi publicado o Código Penal, sendo 80% delas para aumentar o tamanho das punições.

Somente no primeiro mês de trabalhos legislativos de 2019, foram apresentados 254 projetos de lei na Câmara, e 14 no Senado, que tentam estabelecer novos crimes, aumentar penas, criar agravantes e outras alterações.

Conselheiro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e doutor em Direito, Cristiano Maronna avalia que tenta-se usar o Direito Penal hoje para solucionar todo e qualquer tipo de conflito.

“O Direito Penal é a última instância de controle social. Isso quer dizer que somente aquelas condutas mais graves, mais intoleráveis na vida em comunidade, podem justificar a intervenção penal, justamente porque dá uma das respostas mais extremas, que é a privação de liberdade. Mas essa regra não tem sido observada no Brasil”, afirma.

Segundo ele, há uma série de iniciativas legislativas em tramitação para criminalizar condutas que já seriam puníveis com a lei em vigor ou que poderiam ser solucionadas em âmbito civil ou administrativo.

Um deles é o projeto que criminaliza a violação do direito à amamentação. Outro é o que especifica como crime de peculato o desvio de recursos do Bolsa-Família.

O doutor em Direito e professor da FDV Américo Bedê também questiona.

“Não há nenhuma garantia de que o simples fato de tornar crime torne a conduta menos praticada. Essa escolha (de criminalizar) deve ser feita pela sociedade, por meio dos parlamentares, o que nem sempre é simples”, avalia.

CAMINHOS

A dificuldade de o Legislativo aprovar uma lei que trate da homofobia tem feito com que o julgamento do STF sobre o tema caminhe por um rumo errado, na avaliação dos juristas.

O principal projeto que tramitou no Congresso sobre o tema teve origem na Câmara em 2001, chegou ao Senado em 2006, e foi arquivado em 2014. Novos projetos foram apresentados em 2018 e 2019, mas ainda estão em fase inicial de discussão.

Por considerar que há omissão do Legislativo sobre o tema, o STF tem ido em direção a dois caminhos durante o julgamento: ou o de determinar que o Parlamento legisle sobre o tema, ou o de ampliar a interpretação do crime de racismo, para incluir o preconceito por orientação sexual.

“Embora seja importante nomear legalmente o crime de homofobia, o Supremo está cometendo um equívoco, por mais bem intencionado que esteja. Só se pode criar crime por meio de lei. Seria algo inédito”, explica Bedê.

Cristiano Maronna acrescenta que haveria uma violação ao princípio constitucional da legalidade. “Não há crime sem lei anterior que o preveja, é um princípio. Mesmo que a conduta mereça punição penal, repressão, ela não deve ser criada por meio de jurisprudência”, frisa.

NECESSIDADE

Sob outra ótica, a professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ Luciana Boiteux menciona casos em que houve a necessidade de estabelecer novos crimes na lei para tratar de uma conduta mais específica e ser uma espécie de “recado cultural”.

Um dos exemplos é o crime de feminicídio, criado em 2015, e o de importunação sexual, em 2018. “Considero um avanço positivo. Você não está ampliando a punição, mas está reconhecendo na lei que aquela violência é diferenciada. Inclusive para fins de registros, para a adoção de políticas públicas e para garantir direitos para as vítimas”, avalia.

Isso é necessário porque a sociedade, querendo ou não, ainda acredita no papel do Direito Penal, embora haja melhores formas de se pensar a reeducação social, que não se baseie em períodos na cadeia, complementa a especialista.

“Em alguns casos, é como uma cortina de fumaça, uma resposta simbólica. Há uma demanda por criminalização, o Parlamento responde criando o crime, e fica como se o problema estivesse resolvido. Mais urgente que isso são as políticas públicas de inclusão”, defende Luciana Boiteux.

NOVO CÓDIGO PENAL AINDA CAMINHA A PASSOS LENTOS

Enquanto centenas de alterações na legislação penal vão sendo propostas pelos deputados e senadores, o projeto de um novo Código Penal ainda caminha a passos lentos.

A reforma é defendida por uma parcela de juristas, levando em conta que o Código atual é de 1940. O projeto de lei foi apresentado em 2012 pelo ex-senador José Sarney (PMDB-AP), após ter sido elaborado por uma comissão de juristas.

O texto já teve três relatores até agora: Pedro Taques (PDT-MT), que deixou o posto para assumir o governo de Mato Grosso; Vital do Rêgo (PMDB-PB), que virou ministro do Tribunal de Contas da União; e Antônio Anastasia (PSDB-MG), que assumiu somente em setembro de 2016.

Durante esta trajetória, o projeto já chegou a ficar 17 meses sem nenhum andamento relevante. O texto ainda se encontra na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e vai ser necessário um novo plano de trabalho, mais audiências públicas e outro parecer.

O QUE PREVÊ

Além de criar novos crimes, o projeto prevê, para alguns delitos, o endurecimento das penas, a dificuldade para progressão de regime, a abolição do livramento condicional e a possibilidade de conversão de multa em prisão.

Para o doutor em Direito Penal e conselheiro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim) Cristiano Maronna, a reforma do Código seja benéfica para o sistema jurídico.

“Ela seria boa por fazer uma alteração global, em que todo o sistema seja repensado e redimensionado. O que não acho bom são essas reformas pontuais, em que se coloca um crime aqui, outro ali, porque isso retira a coerência do sistema.”

Estudos, inclusive financeiros, deveriam ser levados em conta para decidir as mudanças, opina o especialista. “O legislador não deveria poder criar novos crimes ou aumentar penas sem um estudo sobre o impacto financeiro que isso traria, já que significaria mais gente presa e por mais tempo. E isso tem um custo para o Estado”, justifica.

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O doutor em Direito Américo Bedê destaca que a reforma do Código seria uma oportunidade não apenas de estabelecer novos crimes, nos casos de vazios legislativos, como também de revisar fatos que estão tipificados, mas que não precisariam mais ser enquadrados como tipo penal. “Um exemplo são os crimes contra a honra: calúnia, injúria e difamação. Nos Estados Unidos, por exemplo, eles são resolvidos com medidas duras do Direito Civil, o que me parece ter mais eficácia”, aponta.

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