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'Para sair da crise, Bolsonaro tem que governar para todos'

"Para sair da crise, Bolsonaro tem que governar para todos"

Para José Álvaro Moisés, cientista político e professor da USP, é preciso baixar a onda de polarização que divide não somente partidos, mas também a sociedade

Publicado em 24 de março de 2019 às 00:09

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A cada piscar de olhos o cenário conturbado da política brasileira ganha novos capítulos. Para além da prisão preventiva do ex-presidente Michel Temer (MDB), o país acompanhou na última semana um evidente atrito entre o Poder Executivo Federal e o Congresso Nacional, que culminou no afastamento do presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia (DEM), da condução das negociações para a aprovação da reforma da Previdência, o mais importante projeto do governo de Jair Bolsonaro (PSL) até agora.

Entre escândalos de corrupção e conflitos envolvendo Poderes, o Brasil segue caminhando em seu processo de redemocratização, iniciado há três décadas. Mas qual o custo do cenário atual para a democracia? É isso o que avalia a partir de agora o cientista político da Universidade de São Paulo (USP) José Álvaro Moisés.

Para o professor, a saída para os problemas enfrentados atualmente passa primeiramente pela dissolução da polarização política, que antecede o período eleitoral de 2018. Diante disso, José Álvaro é claro: “O governo deve assumir a sua missão de governar para todos os brasileiros e não somente para aqueles que votaram em Bolsonaro”.

Leia a entrevista completa:

O que a prisão do ex-presidente Michel Temer (MDB) representa para a democracia?

De uma maneira geral, o desempenho da Operação Lava Jato nesses últimos cinco anos mostrou que cada vez mais ninguém está acima da lei no Brasil. Foram muitas pessoas investigadas, processadas, condenadas e presas, o que indica que é um primeiro resultado de uma nova perspectiva de ação por parte do Ministério Público, da Polícia Federal e da Justiça Federal. A prisão de ex-presidentes mostra que mesmo pessoas muito poderosas são passíveis de serem investigadas e eventualmente condenadas quando existem provas.

Mas eu chamo atenção para o fato de que prisões preventivas têm uma série de requisitos que as justificam. No caso do ex-presidente Michel Temer, que tem endereço fixo conhecido e já vinha participando, prestando esclarecimentos nas investigações, não ficou claro que provas existem que pudessem justificar a prisão preventiva. Então, ao mesmo tempo em que há um indício de continuidade da ação da Lava Jato, levanta-se uma dúvida se não está havendo abusos do ponto de vista de procedimentos que ferem princípios legais e constitucionais, como já havia acontecido em outros casos. Por exemplo, a condução coercitiva do ex-presidente Lula antes de ele ser condenado também deixou margem às dúvidas.

O problema não é se enfraquece ou fortalece (a Lava Jato), o problema é que é uma ação que gera algumas dúvidas que têm que ser esclarecidas. O enfraquecimento de uma operação dessa natureza vem ao longo de muito mais tempo se você tiver sucessivos erros que não são explicados. Mas, neste caso, nós estamos diante de uma situação que exige mais esclarecimentos.

O Brasil tem um processo de redemocratização ainda jovem. Esses escândalos de corrupção impactam o seu amadurecimento? De que maneira isso ocorre?

Os escândalos enquanto tais não. Mas o que passa uma indicação de amadurecimento é o fato de que a partir do avanço da democratização houve mais informações, mais conhecimento e maior transparência sobre a existência do fenômeno da corrupção. Houve uma ação de combate que começou com o processo do Mensalão e depois continuou com a Operação Lava Jato. Esse é o amadurecimento no sentido de o país ter tomado conhecimento da extensão e das implicações da corrupção, principalmente para o funcionamento do sistema político e para a legitimidade do sistema democrático.

Estamos enfrentando a questão, o país não está inerte diante da descoberta do caráter sistêmico da corrupção. Algumas instituições importantes, principalmente a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça Federal estão agindo. Agora, é evidente que essa ação que é virtuosa, que é positiva, não pode justificar excessos que contrariam princípios constitucionais e legais.

Ainda se tenta prever os impactos que isso terá no Congresso. Como avalia esse ponto?

A prisão de um político que foi presidente por um dos maiores partidos do país, que teve um papel importante em diferentes momentos e que tem uma bancada importante no Congresso Nacional afeta a maneira como os parlamentares desse partido estão vendo as exigências da conjuntura. Ela levanta uma dúvida sobre como vão prosseguir os entendimentos para fazer o exame e a votação da reforma da Previdência. O MDB tem muitos deputados e a nota do partido imediatamente após a prisão do Michel Temer demonstrou que há uma preocupação e uma certa perplexidade diante do fato.

É previsível que isso vá afetar, por exemplo, a disposição positiva dos deputados de votarem favoráveis à reforma. Não porque tenha sido o Executivo que mandou prender Temer – ele foi preso pelas instituições de fiscalização e controle. Mas porque isso afeta o equilíbrio que estava tentando se construir no Congresso Nacional, no sentido de dar base de apoio ao governo.

Temos visto uma exposição do Poder Judiciário, que recebe muitas críticas. Recentemente, senadores quiseram implantar a CPI da Lava Toga e há quem diga que a prisão de Temer foi uma resposta do MPF ao STF. Essa desconfiança prejudica a democracia?

Estamos vivendo um momento de crise, de uma tensão entre as instituições. De um lado, há alguns aspectos que mostram uma insuficiente ação por parte do Legislativo. Há vários temas sobre os quais ele teria que decidir que, ao não fazer, deixa um espaço aberto para o Judiciário, que, por sua vez, progressivamente ocupou esse espaço e passou a ter um protagonismo que muitas vezes tem sido considerado abusivo porque ele invade esferas e áreas de outros Poderes.

Essa tensão foi se generalizando e se ampliando. Ela afeta, inclusive, o próprio plenário do Supremo Tribunal Federal, que está muito dividido. A última decisão, que afeta elementos de funcionamento da Lava Jato (a partir da qual crimes que tenham relação com campanhas eleitorais devem ser remetidos à Justiça Eleitoral e, portanto, serem retirados da Justiça Federal em primeira instância) foi uma decisão tomada por uma maioria muito escassa, de 6 a 5. Mostra, portanto, que concepções que estão na sociedade e entre os parlamentares estão também dividindo a Corte.

Nesse conjunto de situações, o protagonismo que o Judiciário assumiu, muitas vezes substituindo instituições relapsas, aumentou o teor de tensão. Muitos parlamentares colocam em questão a ação do STF. O Supremo agora tem um inquérito aberto pelo presidente Dias Toffoli em relação aos ataques que membros da instituição vêm sofrendo.

No caso do Executivo, o presidente Jair Bolsonaro foi eleito com maioria dos votos. Apesar de ter apresentado a proposta de reforma da Previdência, ainda não deu evidências de que ela é a prioridade de seu governo, de que ele coordena a ação no Congresso para a aprovação do projeto. Ele dá sinais equivocados nessa direção.

Então, você tem crise no Executivo, crise no Legislativo, crise no Judiciário. Esse conjunto, que às vezes leva a conflitos entre as instituições, não ajuda na continuidade, na qualidade da democracia brasileira.

E há uma saída para isso?

O primeiro passo na direção de sair da crise é, por um lado, o governo assumir a sua missão de governar para todos os brasileiros e não somente para aqueles que votaram em Bolsonaro. O país precisa, primeiro, se despolarizar. Baixar a onda de polarização que está dividindo não só partidos e facções, mas a sociedade. Isso não cria uma atmosfera, uma cultura favorável para que o governo realize as suas tarefas.

O segundo passo é que o governo deve ter clareza de qual é a sua prioridade. Se realmente é o ajuste fiscal e a reforma da Previdência, é preciso concentrar todos os esforços de coordenação e de contato com todos os partidos – sem os quais não vai se chegar a nenhuma decisão sobre isso –, mas, ao mesmo tempo, precisa apurar melhor as propostas.

Por exemplo, demorou muito para o governo entregar a proposta da chamada Previdência Social dos militares, o que estava gerando uma resistência nos parlamentares porque não queriam considerar a proposta como um todo sem a parte os militares. Agora eles entregaram e já se percebeu que o tratamento que foi dado misturou duas coisas que não são boas: a proposta da Previdência com a reestruturação da carreira militar. Ao não contemplar a igualdade que se esperava que a proposta tivesse em relação a todos os outros setores da sociedade, além de diminuir a economia que se poderia ter, levantou-se uma dúvida sobre a reforma.

O governo quer resolver todas as questões ao mesmo tempo, inclusive algumas que vêm lá de trás. Talvez não seja o momento oportuno para isso, atrapalha. São indicações de que o foco não está definido. O governo precisa demonstrar que haverá um tratamento equânime para todos os seguimentos da sociedade. Se não fizer isso, vai acabar impedindo a aprovação da reforma.

Bolsonaro e membros do governo elogiam ditadores, inclusive recentemente em viagem ao Chile. Esse tipo de comportamento afeta simbolicamente a democracia brasileira?

Bolsonaro foi eleito democraticamente e tem legitimidade, mas, ao mesmo tempo, essas declarações de elogio à ditadura são sinais de uma perspectiva autoritária que coordena as ações e pensamentos do presidente. Embora tenha sido eleito democraticamente, em alguns aspectos ele não é propriamente um democrata. Um democrata não faz elogios à ditadura. Ele elogia alguns aspectos e dá margem a essas interpretações, como, aliás, antes mesmo da campanha, ele tinha elogiado figuras do Brasil responsáveis pela tortura de presos políticos.

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De certa maneira, é quase como se fosse possível “naturalizar” (digo essa palavra entre aspas) governos e ações que feriram, que contrariaram a democracia. Ao invés de fortalecer, essas declarações do presidente enfraquecem a democracia.

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