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'Guerra às drogas é 'enxugação' de gelo', diz delegado da PF

"Guerra às drogas é 'enxugação' de gelo", diz delegado da PF

Delegado da Polícia Federal diz que governos não imaginavam que, ao fortalecer a instituição, crimes de colarinho branco entrariam na mira. E avalia que a corrupção no Brasil não diminuiu após a Lava Jato

Publicado em 12 de maio de 2019 às 10:33

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O delegado da Polícia Federal (PF) Jorge Pontes. (Alexia Fidalgo)

Nos idos de 1989, o recém-formado agente da Polícia Federal Jorge Pontes pilotava pelas águas do Rio Negro uma lancha que conduzia equipe da PF à procura de uma embarcação carregada com grande quantidade de pasta base de cocaína. Apreender drogas já era uma obsessão dos federais, sobretudo nas regiões fronteiriças. Depois de duas abordagens infrutíferas, a terceira jamais seria esquecida pelo policial: o barco levava dezenas de tartarugas. Mas o ímpeto de encontrar os entorpecentes era tão grande que o crime ambiental foi ignorado. Os federais estavam focados em seguir o rastro da droga.

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A gente está sendo acusado de criminalizar a política, mas a política que se tornou criminosa. Não vamos fechar o Congresso, fechar o Supremo. Todas as fortunas que jorraram nas campanhas, bilhões foram desviados não só para campanhas do Executivo... A criminalidade institucionalizada corrompe a democracia na raiz

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Anos depois, Pontes tornou-se delegado da PF. Ao longo de quase trinta anos de trabalho na polícia, com passagens pela coordenação-geral da Interpol no Brasil, pela superintendência de Pernambuco e várias outras atividades no país e no exterior, a ação no rio não foi a única vez em que o delegado refletiu sobre o foco do trabalho da PF como braço repressivo.

No livro “Crime.gov”, o delegado apresenta esse e outros temas para debate. Para ele, a longeva guerra às drogas tem resultado pífio – e, muitas vezes, retira a PF do encalço dos bandidos verdadeiramente perigosos.

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A PF vem combatendo o tráfico de drogas nas últimas quatro ou cinco décadas, com muita força, colocando todos os nossos recursos. Observamos que continua havendo oferta. Quem quiser ter acesso vai ter. A guerra às drogas é uma enxugação de gelo. Não acho que a droga seja algo bom para a sociedade. É um flagelo. Só que o enfrentamento não está fazendo diferença

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O outro autor do livro é o também delegado Márcio Anselmo, responsável por um dos inquéritos iniciais da Operação Lava Jato em Curitiba. O foco da dupla é discutir o que chama de crime institucionalizado, algo que ocorre não à margem da sociedade, mas dentro do poder, com a força da caneta.

Jorge Pontes tem 59 anos, é do Rio de Janeiro e o atual diretor de Ensino e Estatística da Secretaria Nacional de Segurança Pública, ligada ao Ministério da Justiça.

Os senhores trabalham a gravidade do crime institucionalizado. Gostaria que começasse sintetizando esse conceito.

É algo bem acima da criminalidade organizada que estamos acostumados a observar nas organizações tipo máfia italiana, Comando Vermelho e outras dedicadas ao tráfico de armas e drogas. É uma ameaça muito acima que a de qualquer outra organização porque se organiza dentro do poder, a partir das prateleiras governamentais. O chefe do crime organizado tem de 15 a 20 anos de carreira criminosa para chegar ao topo. No crime institucionalizado, o sujeito tem que ganhar uma eleição para chegar lá, seja de uma prefeitura, a presidência ou o governo estadual. O crime institucionalizado não usa a arma para se garantir. A grande arma dele é a caneta e o Diário Oficial. O chefe do Executivo nomeia pessoas-chave nas secretarias, ministérios e estatais para desviar grandes somas. É um crime que não fica só, infelizmente, em um dos Poderes. É transversal. Normalmente, as assembleias legislativas e o Congresso têm grande número de deputados que se envolvem dando suporte legislativo a esse modelo organizacional.

Como?

Aprovando leis que garantem o comando da unidade política e aprovando leis para inibir os investigadores. O crime organizado está fora do mundo oficial. Por isso são chamados de marginais. Mas não dá para chamar de marginal uma pessoa que está dentro de um gabinete nomeando ministros, demitindo nossos chefes, nomeando procuradores, aprovando nossos orçamentos, aprovando leis que nos intimidam e escolhendo os juízes que vão julgar eles mesmos. É uma ameaça terrível. É algo que eu como policial com mais de 30 anos de experiência nunca observei numa democracia.

No livro, há uma correlação entre o crime institucionalizado e a baleia. Durante muito tempo só foi possível ver partes dela, como o esguicho, o dorso. Depois da Lava Jato, o animal foi visto por completo. Dito isso, pergunto: considera o Brasil, hoje, um país menos corrupto?

Não. O Brasil tem mais conhecimento sobre a corrupção, mas não é menos corrupto. Nesse momento, entrou um presidente com discurso de moralização e combate ao crime. Pelo menos no Executivo federal já há algo. Foi feita escolha do ex-juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça. Foi um grande passo para desmontar o processo da criminalidade institucionalizada. Mas observamos que houve grande renovação no Congresso, mas não houve renovação ao ponto de entendermos que estamos livres dessa praga. Vários governos e assembleias legislativas continuam contaminadas. É um monstro muito grande e difícil de combater porque tem um poder formal, inclusive sobre nós, aparelho repressivo.

Os senhores, no livro, tratam o combate ao tráfico de drogas como algo que tira o foco da PF de suas atribuições principais. Mas esse não é um crime complexo, de ampla repercussão social e econômica e que, portanto, deve ter o combate priorizado?

A PF vem combatendo o tráfico de drogas nas últimas quatro ou cinco décadas, com muita força, colocando todos os nossos recursos. Observamos que continua havendo oferta. Quem quiser ter acesso vai ter. A guerra às drogas é uma enxugação de gelo. Não acho que a droga seja algo bom ou tranquilo para a sociedade. É um flagelo, com todos os seus aspectos. Só que o enfrentamento à droga em uma guerra desenfreada está nos mostrando que não está fazendo diferença. Se são apreendidos, dez quilos, cem ou duas toneladas é como se tivesse tirado alguns baldes de uma lagoa gigantesca. Não fará diferença nenhuma. A guerra ao tráfico gera delitos de suporte ao tráfico. Tráfico de armas, corrupção policial, assassinatos, extorsão, sequestros. É uma gama de crimes que floresce não da venda da droga, mas da guerra, como efeito colateral. Sem falar que abarrota os presídios com jovens negros de vinte e poucos anos, forçados a frequentar faculdade crime dentro da cadeia, que estão ali fazendo o transporte, a parte menos importante da cadeia criminosa. Não estou dizendo que o Brasil pode, de uma hora para outra, descriminalizar, porque o Brasil é um país continental. Tinha que ser um movimento do mundo ocidental.

Decretos e leis considerados cruciais para a Lava Jato surgiram nos governos Lula e Dilma. E tem o ministro da Justiça de Lula, Márcio Thomaz Bastos, com trabalho reconhecido de amadurecimento e fortalecimento da PF. Tudo isso foi descuido dos políticos da época?

Garanto a você que não foi bondade. Não foi visão de estadista. A lei anticorrupção é de 2013, o ano das grandes manifestações. Houve uma pressão popular que eles não imaginavam. Até falam que pensavam que estavam fazendo a lei para traficante de droga. Não imaginavam que as novidades, as ferramentas trazidas por essas leis, seriam usadas contra eles mesmos. Quanto ao Márcio Thomaz Bastos, o ato fundamental dele foi ter nomeado Paulo Lacerda como diretor da PF, que foi quem promoveu as grandes operações. Assim como temos que reconhecer, historicamente, que foi naquela linha do tempo que a PF deu um salto, temos que reconhecer que esse salto é conjunção de diversos fatores históricos que vieram a amadurecer. O livro fala do paradoxo da polícia sob Lula. Foram vários os fatores... É como se nascesse um menino, que faz um, cinco, dez anos. Quando faz 25, está dentro do governo Lula. Então foi o governo que fez com que ele tivesse 1,90m, fosse forte e falasse bem? Não.

Em determinada altura, os senhores dizem, no livro, que “por mais ferrenhas” que muitas disputas políticas possam parecer, almeja-se não apenas assentos no Executivo ou no Legislativo, mas “cadeiras numa organização criminosa institucionalizada, blindada, lucrativa e atraente”. Assim, pergunto: como o senhor, que conhece os caminhos do crime, enxerga a nossa democracia?

Eu vou com a esperança de quem vai bater um pênalti em uma partida que está zero a zero. Coloco a bola de baixo do braço e vou para a marca do pênalti como Zico fazia. Você pode estar consertando o país ou pode estar dando cadeira para um capo do crime institucionalizado. E outra coisa: não há uma saída fora da democracia. Você pode dizer que tenha uma um país na África Central que o chefe de Estado é um ladrão, larápio, fraudador, nomeou todo o staff de ladrões e tal. Mas veja que são países em que o poder foi tomado à força, com homicídio, com facadas, com tiros. O nosso caso é muito mais complexo. As pessoas chegam ao poder por intermédio do voto sagrado. É o desejo popular que leva essas pessoas. Isso fica muito mais difícil de ser detectado e combatido. Parte dos eleitores não se conforma em ver seus escolhidos sendo alvejados por investigações. Tem a desonestidade intelectual, eles mentem. A população brasileira não é muito educada nesse sentido, cai no canto da sereia do populismo.

A gente está sendo acusado de criminalizar a política, mas a política que se tornou criminosa. Não vamos fechar o Congresso, não vamos fechar o Supremo. Todas as fortunas que jorraram nas campanhas, bilhões foram desviados não só para campanhas do Executivo... tudo isso é uma afronta à democracia. E a criminalidade institucionalizada corrompe a democracia na raiz. Quantos senadores, governadores, deputados não eram nem para terem sido eleitos? É só olhar a situação do Rio de Janeiro, quantos governadores estiveram na cadeia. O crime institucionalizado, que toma governos inteiros, chega forte no Legislativo, tem influencia sobre o Judiciário e leva efeito a parte do empresariado, isso sequestra o país. Ficar do lado desse tipo de postura, com sofismas de garantismo e tudo mais, é o fim da picada.

Como acha que a sociedade enxerga as punições?

A sociedade não quer outro resultado que não seja cadeia, encarceramento. Esse negócio de o sujeito ficar em casa, em casarão que comprou com dinheiro desviado, de tornozeleira, na jacuzzi, com bom ar-condicionado, comendo do bom e do melhor... a população quer o sujeito encarcerado, em regime fechado. Se ele não ver isso acontecendo, não vamos ter moral para reprimir o ladrão de galinha.

Falava-se em delação do fim do mundo. O mundo continua perfeitamente aí. Houve exagero na utilização do instituto?

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Não acho exagero nenhum, acho importantíssimo. Se não fosse o instituto da delação talvez a Lava Jato não tivesse tanto sucesso. Foi uma ferramenta inovadora, veio em boa hora. Com um monstro dessas proporções temos que ter novas legislações, novos instrumentos. Obviamente, uma operação que está rodando há cinco anos pode ter tido um erro aqui ou outro ali, mas nada que comprometa o instituto da delação. Ela foi e será fundamental.

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