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Coautor de Elite da Tropa defende desmilitarizar a PM

Coautor de Elite da Tropa defende desmilitarizar a PM

Ele também critica a chamada "licença para matar": "As milícias são filhas bastardas da política que autoriza as execuções extrajudiciais"

Publicado em 23 de agosto de 2019 às 00:14

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Luiz Eduardo Soares, antropólogo, escritor, ex-secretário nacional de segurança pública e autor do livro "Desmilitarizar". (Artur Renzo/Divulgação)

Coautor de Elite da Tropa, livro que deu origem ao filme Tropa de Elite, o antropólogo Luiz Eduardo Soares avalia que, embora não seja suficiente para resolver o problema da (in)segurança pública, a Polícia Militar deveria ser desmilitarizada.

Em "Desmilitarizar - Segurança Pública e Direitos Humanos" ele já evoca: "Dedico este livro às mães dos jovens mortos pelas polícias e às mães dos policiais mortos nessa estúpida guerra fratricida. Que o destino trágico as una pelo menos nesta página. Se elas compreenderem, algum dia, que são irmãs na dor e que o inimigo está em outro lugar, a politização do sofrimento promoverá uma revolução no Brasil".

Em entrevista ao Gazeta Online, Soares pontua que o modelo atual de organização das PMs, inspirado no Exército, não é o melhor para a sociedade e para os próprios militares. E defende, ainda, o direito à sindicalização e à greve.

"A sindicalização é um dos objetivos da reforma e o direito à greve será regulamentado por analogia ao que se verifica em áreas essenciais, como a saúde. Atualmente, a sindicalização e as greves são proibidas. Qual o resultado? Em 20 anos, mais de 200 greves selvagens no país, nas quais, com frequência, lideranças carismáticas inorgânicas e imaturas acabam sendo recebidas pelos governadores acuados, os quais oferecem algumas concessões e pavimentam a carreira política de demagogos", afirma.

"Desmilitarizar - Segurança Pública e Direitos Humanos", livro de Luiz Eduardo Soares. (Divulgação)

Em fevereiro de 2017, com policiais militares fora das ruas no Espírito Santo, 219 pessoas foram assassinadas.

O tema é controverso. Um debate foi marcado para esta terça-feira (13), em Brasília, pela Câmara de Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do Ministério Público Federal. E houve reações. O Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público do Estados e da União (CNPG) emitiu nota em que "manifesta preocupação com a realização de eventos que, a pretexto de debater a segurança pública, possam desqualificar a atuação de instituições públicas como a Polícia Militar". 

E o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, como registrou o colunista do jornal "O Globo", Bernardo Mello Franco, quer até punição aos procuradores do MPF organizados do evento. Luiz Eduardo Soares é um dos convidados, assim como Elias Miller, coronel da reserva da PMSP, diretor da Federação Nacional de Oficiais Militares Estaduais e chefe de gabinete do senador Major Olímpio (PSL-SP).

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Se aceitarmos a primeira censura, o primeiro veto ao diálogo, em breve, não haverá mais liberdade

Luiz Eduardo Soares - antropólogo, cientista político e escritor, ex-secretário nacional de Segurança Pública
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Por que desmilitarizar a polícia? Isso contribuiria para o aumento da segurança pública? De que forma?

As polícias militares brasileiras são força reserva do Exército, ao qual se vinculam pela Inspetoria Geral e do qual devem copiar a forma de organização. Todos sabemos que a melhor forma de organização para uma instituição é aquela que melhor sirva ao cumprimento de suas finalidades.

A centralização decisória, a rigidez hierárquica, a estrutura vertical, típicas do Exército, serve à sua finalidade constitucional, que é, no limite, fazer a guerra para defender a soberania do território nacional. O método bélico por excelência com que opera é o pronto emprego: o deslocamento célere e convergente de grandes contingentes humanos e materiais. Esse procedimento exige aquela estrutura.

Por outro lado, as polícias militares têm outros objetivos: garantir direitos, proteger a cidadania, prevenir a violência. Por que, então, haveriam de copiar o modelo organizacional do Exército? Salvo em circunstâncias extremas de conflito armado, para o qual unidades especiais poderiam ser convocadas, o trabalho cotidiano das PMs seria conduzido com muito mais eficiência se os policiais, na ponta, agissem como gestores locais da segurança, diagnosticando cada situação, interagindo com a comunidade, articulando medidas inter-setoriais do poder público.

Isso requer autonomia relativa dos agentes e, portanto, descentralização organizacional e flexibilidade adaptativa a circunstâncias locais, sempre distintas. Ou seja, o avesso da rigidez e da centralização, em cujo âmbito os agentes locais são soldados que apenas cumprem ordens.

Há outros dois motivos: o atual modelo organizacional, que mimetiza o Exército, tem mantido, ao longo das décadas, uma cultura corporativa belicista, que define o suspeito como inimigo a ser eliminado. A PM deve aprender a ver-se e a agir como uma prestadora de serviços à cidadania, não como um braço operacional das Forças Armadas.

Por outro lado, os cidadãos trabalhadores policiais, em boa parte do país, têm sofrido absurda exploração. Governos aproveitam-se da natureza militar da instituição para impor condições de trabalho desumanas e regimentos disciplinares aviltantes. Militares não podem questionar ordens, muito menos recusar-se a cumpri-las, não podem se organizar e expressar. Nem mesmo participar do debate público sobre reforma das polícias eles podem. Como mudar sem o seu protagonismo?

PMs: para antropólogo, corporação deve se ver como prestadora de serviços à cidadania. (Fernando Madeira)

Mas como essa mudança afetaria os próprios policiais? E aqui faço questões que o senhor mesmo registra no livro: "Como se daria, na prática, a desmilitarização? Os policiais militares deixariam de sê-lo a partir de determinada data? As patentes seriam substituídas por qual tipo de ordenamento interno? Os salários seriam modificados? Os policiais poderiam se sindicalizar?". E não aumentariam os problemas de desrespeito à disciplina e à hierarquia? Em 2017 houve uma greve no Espírito Santo.

O primeiro compromisso tem de ser: nenhum policial militar será prejudicado. Todos os direitos adquiridos serão preservados. As mudanças têm de ser incrementais e dizem respeito aos futuros contratados. O processo implicará a manutenção de dupla identidade, enquanto necessário. Estamos falando de reforma constitucional, política de Estado, que se estende por mais de uma década, não de governo.

A sindicalização é um dos objetivos da reforma e o direito à greve será regulamentado por analogia ao que se verifica em áreas essenciais, como a saúde. Atualmente, a sindicalização e as greves são proibidas. Qual o resultado? Em 20 anos, mais de 200 greves selvagens no país, nas quais, com frequência, lideranças carismáticas inorgânicas e imaturas acabam sendo recebidas pelos governadores acuados, os quais oferecem algumas concessões e pavimentam a carreira política de demagogos.

E assim foi se povoando o Congresso com lideranças reacionárias e ultra-corporativistas, que, salvo exceções, jamais propuseram nada que levasse em conta a modernização da segurança pública em benefício da sociedade. Sindicatos significam possibilidade de aprendizado, acúmulo de experiências, amadurecimento político.

A Polícia Civil, por óbvio, não é militarizada. É superior à militar? A maioria dos homicídios no Espírito Santo, por exemplo, fica sem resposta. Não se pode dizer que por desídia dos investigadores, mas por uma série de problemas estruturais. Solucionar o problema da segurança pública não vai mais além do que desmilitarizar?

Claro, desmilitarizar é apenas uma das várias reformas imprescindíveis e inadiáveis. Entre as outras necessárias, destaco: (1) Instituir o ciclo completo em todas as polícias, vale dizer, todas executariam -como ocorre em todo o mundo democrático desenvolvido - o conjunto das atividades policiais, da prevenção ostensiva à investigação, hoje distribuídas entre as polícias militares e civis.

(2) Instaurar a carreira única em todas as instituições policiais, isto é, a porta de entrada para os profissionais seria uma só, a partir da qual as carreiras avançariam de acordo com cursos, desempenho, etc. Mais uma vez, nada de mais, apenas o que o mundo civilizado pratica. Hoje, temos quatro polícias estaduais, duas militares (a das praças e a dos oficiais) e duas civis (a dos agentes e a dos delegados). Não há coesão, nem interna, nem externamente.

Há disputas e ódio, sentimento de injustiça e humilhação. Mas é relevante sublinhar o seguinte: o fato de que as reformas que sugiro no livro sejam indispensáveis não significa, nem de longe, que sejam suficientes. Há muito mais a fazer, tanto nas polícias, quanto na sociedade - inclusive, na mídia.

O Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG) divulgou nota em solidariedade à PM e externou preocupação com o debate marcado pelo MPF para esta terça-feira (13) sobre a desmilitarização. E o governador Witzel, estranhamente, cobrou até punição aos procuradores que vão participar do evento. Como o senhor recebe essas reações?

Recebo com perplexidade e indignação. Criticar minhas propostas é perfeitamente democrático e natural. Ninguém é dono da verdade. As críticas nos fazem crescer e aperfeiçoar argumentos. Todos ganhamos com o debate. Entretanto, outra coisa muito diferente é atacar a própria realização do debate. Parece que o obscurantismo avança no Brasil, testando nossas reações. Se aceitarmos a primeira censura, o primeiro veto ao diálogo, em breve, não haverá mais liberdade.

No livro o senhor menciona a forma como direita, esquerda ou pretensos liberais tratam a questão da segurança pública, cada um de sua forma particular. Poderia resumi-las?

As esquerdas, de um modo geral, ressalvadas as exceções de praxe, têm sido ótimas na necessária denúncia, mas omissas na proposição de alternativas. A direita está no poder há décadas, na área de segurança, e o resultado é o genocídio de jovens negros e pobres, nas periferias e favelas, é o encarceramento racista em massa, é a criminalização da pobreza, o fortalecimento das facções criminosas, o crescimento de milícias e da corrupção policial, e também a desvalorização dos profissionais de polícia, tratados como peças descartáveis de um maquinário decadente e inepto.

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Enquanto isso, os liberais lavam as mãos, eles que seriam os herdeiros naturais das bandeiras humanistas, eles que seriam os supostos defensores dos direitos humanos

Luiz Eduardo Soares - antropólogo, cientista político e escritor, ex-secretário nacional de Segurança Pública
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São raros os verdadeiros liberais no Brasil. Quase sempre, limitam-se a defender o mercado. No mais, são cúmplices do banho de sangue.

No livro o senhor também aventa a possibilidade de que, na hipótese de os policiais serem autorizados a matar em serviço sem sofrerem punição ou investigação, haver uma "sociedade" entre segmentos policiais e criminosos. Como se daria isso?

Não avento a possibilidade, descrevo a realidade. É o que acontece diante de nossos narizes. Quando as autoridades superiores dão aos policiais na ponta liberdade para matar (não me refiro à legítima defesa, é claro, que é um direito consagrado), dão-lhes também, tacitamente, liberdade para não fazê-lo, ou seja, para que a sobrevida seja negociada.

A vida se torna uma moeda poderosa, a principal fonte de corrupção. Da sobrevivência, passa-se à participação nos lucros dos negócios criminosos e assim evolui a economia da corrupção, que degrada as polícias e as torna indistinguíveis do crime. Grupos de policiais que se deixam capturar por essa dinâmica infame formam nichos independentes, condenando a instituição à anarquia.

As milícias são filhas bastardas da política que autoriza as execuções extrajudiciais. Esse processo está em curso. Em 2019, até julho, 881 pessoas foram mortas pelas polícias, no Estado do Rio. Quem vota em candidato que promete violência policial para acabar com o crime colhe a tempestade da insegurança. Só a legalidade salva.

Embora isso possa ocorrer, como a formação das milícias no Rio de Janeiro, notadamente com participação de policiais ou ex-policiais, não quer dizer que todos os policiais adotariam essa prática.

Claro que não.

Presídio com superlotação: Brasil tem quase 800 mil presos. (IImagem de Arquivo/Agência Brasil)

Militarizados ou não, é comum que policiais sintam-se como "enxugadores de gelo", realizando muitas prisões, lotando presídios e, mesmo assim, vendo índices alarmantes de criminalidade, muitas vezes engrossados por pessoas que eles mesmos prenderam e que, soltas, reincidem no crime. Como resolver isso?

Temos a terceira população carcerária do mundo, quase 800 mil presos, e a que cresce mais rapidamente em todo o mundo, desde 2001. Portanto, o problema não é a Justiça “soltar”. Seis erros se combinam: (1) Nosso país praticamente só prende em flagrante, porque a polícia civil investiga muito pouco e a PM é proibida de investigar. Só em 2017, houve, 65.622 assassinatos - 70% das vítimas eram negros -, mas no sistema penitenciário apenas 13% cumprem pena por homicídio.

(2) Adotamos como punição quase exclusiva o encarceramento, que deveria ser medida extrema, para casos graves, que envolvam violência.

(3) A lei de drogas é irracional e hipócrita. Encarcerando em massa os varejistas do comércio de substâncias ilícitas, destruímos a vida de milhares de jovens e alimentamos as facções criminosas que dominam o sistema penitenciário. Ou seja, contratamos violência futura.

(4) O Estado brasileiro é criminoso: não cumpre a Lei de execuções penais. (5) Nunca tomamos como foco dos investimentos de segurança os pontos mais importantes: o controle das armas, o investimento na perícia técnica e na valorização profissional dos policiais, e a redução dos homicídios. (6) E não preciso dizer que, no país do racismo estrutural e das desigualdades, a insegurança será a norma, não a exceção.

Diante de um problema crescente de sentimento de insegurança, as pessoas passam a clamar por soluções drásticas, ainda que simplistas. No que - digo os principais pontos - a política de segurança pública falhou ao longo dos anos para que se chegasse a esse ponto?

Experiências consistentes de políticas de segurança foram raras e inconstantes, no país. Por outro lado, além da política criminal equivocada, que prioriza a danosa “guerra às drogas”, contamos com uma arquitetura institucional herdada da ditadura, na qual os municípios são negligenciados, os Estados arcam com quase toda a responsabilidade e a União é autorizada a lavar as mãos.

Nosso modelo policial é único no mundo e, como se vê, não funciona (70% dos policiais concordam com essa avaliação). A transição democrática ainda não chegou à segurança. Nossas políticas de segurança têm sido centradas na força reativa. Em vez de observar as evidências e concluir que é preciso mudar, governos novos, com frequência, chegam prometendo fazer mais do mesmo, com mais intensidade.  Confundindo justiça com vingança e inspirados pelo medo, os brasileiros caminhamos para o abismo.

Elite da Tropa, livro que deu origem ao filme Tropa de Elite. (Divulgação)

Algo mudou na área da segurança pública desde a publicação de Elite da Tropa?

Houve tentativas meritórias, mas localizadas e, não raro, descontinuadas.

O ministro Sergio Moro tem comemorado a redução de alguns índices de criminalidade. Há, na opinião do senhor, algum avanço sob o governo Bolsonaro?

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O que tivemos até agora? Flexibilização do acesso a armas, as propostas de excludente de ilicitude e de medidas que aumentariam o encarceramento. Ou seja, teremos mais armas, mais execuções extra-judiciais e mais encarceramento. O oposto do que seria necessário.

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