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Inspiração da Lava Jato, Mãos Limpas sofreu mais com reação de políticos

Inspiração da Lava Jato, Mãos Limpas sofreu mais com reação de políticos

Operação italiana foi atingida por decreto 'salva ladrões' e intervenções parlamentares no direito penal

Publicado em 16 de setembro de 2019 às 07:53

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Inspiração da Lava Jato, Mãos Limpas sofreu mais com reação de políticos. (José Cruz/Agência Brasil | Arquivo)

No dia 13 de julho de 1994, uma quarta-feira, Brasil e Itália se classificaram para a final da Copa do Mundo disputada nos Estados Unidos. Seria a reedição da decisão de 1970 e a tão esperada revanche brasileira após a eliminação de 1982.

Em Roma, a loucura nacional com os dois gols de Roberto Baggio --os italianos bateram na semifinal a Bulgária de Stoichkov, uma das sensações do mundial, por 2 a 1-- ofuscou uma decisão tomada naquele dia pelo recém-eleito governo de Silvio Berlusconi.

O Executivo aproveitou a euforia futebolística para editar o decreto Biondi (referência ao nome do ministro da Justiça de Berlusconi que o propôs), que ficaria popularmente conhecido como "salva ladri" (salva ladrões) e provocou a soltura de todos os investigados da Operação Mãos Limpas que estavam detidos preventivamente, retardando e anulando muitos dos processos.

A medida foi o primeiro golpe do sistema contra a investigação iniciada em 1992 e que vinha naquela altura dinamitando toda a classe política, além de ameaçar o próprio Berlusconi, empresário que chegou ao poder como um outsider após o estrago inicial da investigação nos partidos tradicionais.

O decreto impedia a prisão preventiva para pessoas investigadas por crimes de corrupção, concussão, entre outros, e seu texto repetia alguns dos argumentos presentes em quatro decretos aprovados em 1993 pelos parlamentares, mas que à época acabaram vetados pelo presidente da República.

O procedimento aprovado na surdina pelo governo Berlusconi ficou em vigor apenas uma semana, sendo revogado pelo Parlamento após o Brasil levantar o tetra, diante da pressão popular e de uma dura ameaça do pool de investigadores da Mãos Limpas, que fez um pronunciamento na TV e ameaçou se demitir se a medida não fosse revista.

Mas os estragos seriam irrevogáveis. Começava ali a aberta reação da classe política, que se arrastaria por mais de uma década. O decreto "salva ladri" é um dos tantos exemplos italianos citados pela força-tarefa da Lava Jato para alertar sobre a tentativa de vingança dos políticos.

Assim é visto por eles o projeto de lei que endurece as punições por abuso de autoridade de agentes públicos como juízes, promotores e policiais, aprovado pelo Congresso e sancionado com vetos pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) na última semana.

Bolsonaro vetou 36 pontos em 19 artigos (de um total de 108 e 45, respectivamente), beneficiando principalmente a categoria policial, mas a proposta segue criticada por defensores da Lava Jato.

No mês passado, o procurador Deltan Dallagnol, em campanha contra a medida, tuitou citando mais uma vez o caso italiano.

"No fim da Mãos Limpas, na Itália, a pauta contra supostos abusos da Justiça substituiu a pauta anticorrupção sem que esta fosse aprovada. Várias lei passaram para garantir impunidade a poderosos. A Itália segue com maiores índices de corrupção da União Europeia", disse. Apesar da similaridade com a insurreição de políticos, entre uma e outra operação há mais diferenças do que semelhanças.

A Lava Jato foi abertamente inspirada na sua congênere italiana e as duas são tratadas por especialistas como as maiores investigações já realizadas no mundo contra a corrupção. No Brasil, contudo, não ocorreu --pelo menos até agora-- uma reação da classe política tão ampla como a vista no país europeu.

"As leis que foram aprovadas pararam a atividade de investigação e repressão na metade do caminho. Foram leis feitas por um largo espectro político, da direita à esquerda", disse em 2017, durante um evento para discutir os 25 anos da Mãos Limpas, o juiz Piercamillo Davigo, um dos investigadores do pool histórico e hoje membro de um tribunal equivalente à Suprema Corte.

Houve várias intervenções dos parlamentares no direito penal da Itália, reduzindo a prescrição para casos de corrupção e modificando crimes como o de abuso de ofício e o relativo à falsificação contábil, um dos principais caminhos para rastrear desvios de recursos.

Diante das contínuas mudanças a partir de 1994, a Itália chegou a ter um observador internacional indicado pela ONU para acompanhar a independência do Poder Judiciário. "Essas mudanças enviaram um sinal muito ruim, culturalmente falando. O efeito foi muito negativo", afirmou Raffaele Cantone, presidente da Anac (sigla da Autoridade Nacional Anticorrupção), órgão do Estado italiano instituído por lei em 2014 para combater a corrupção.

A partir de 2012, novas leis trataram de revogar os empecilhos impostos no passado e instituíram medidas que facilitassem o combate à corrupção. Para Cantone, tratou-se de uma inflexão, 20 anos depois do início da Mãos Limpas.

Outra diferença notável é que na Itália, durante a existência da Mãos Limpas, não se registraram suspeitas na dimensão das que foram reveladas no Brasil com a troca de mensagens de integrantes da força-tarefa de Curitiba e o ex-juiz Sergio Moro, obtidas pelo site The Intercept Brasil.

Os investigadores italianos também foram alvos de processos e procedimentos disciplinares, alguns de iniciativa do Ministério da Justiça, outros dos próprios investigados, mas nenhuma irregularidade foi detectada.

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Investigador histórico da Mãos Limpas, o ex-magistrado Gherardo Colombo defendeu o escrutínio da atuação dos investigadores como maneira de se remediar eventual má conduta. Ele foi alvo de cinco ações disciplinares.

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