Padre Kelder

O Domingo de Ramos em que a procissão não ignorou um corpo na rua

"Hoje compreendo que naquela manhã de domingo um ato de violência me fez ser o ponto de interseção de duas vidas que sequer conhecia pessoalmente", diz padre Kelder

Publicado em 26/07/2019 às 09h28

Padre Kelder José Brandão Figueira*

Um homicídio em São Pedro, no dia 13 de abril de 2014, um Domingo de Ramos, teve muita visibilidade. Saí de casa para iniciar a procissão que tradicionalmente tem início no lugar onde o Papa João Paulo II fez o discurso quando visitou o bairro na década de 90. E é sobre esse dia que inicio o segundo artigo de uma série em que narro a descoberta de valores cristãos na relação com os traficantes.

> Leia também o artigo anterior: "O que um padre aprendeu com Matheus, um jovem traficante"

Ao passar em frente ao Bar do Barão, que era famoso pelo alto índice de violência e consumo de drogas lícitas e ilícitas, vi um táxi parado, com a porta aberta e os faroletes piscando. De pronto, me veio a lembrança do José Barti, um taxista que foi executado no portão do Seminário em 1997, quando ainda era seminarista. Ele foi executado de madrugada.

A movimentação e os tiros nos acordaram. Foi uma cena horrível. Ele tinha 29 anos, deixou uma filha de 3 anos e a mulher grávida de 7 meses. Naquela noite entendi a passagem bíblica em que Deus diz: “Ouço o sangue do teu irmão, do solo, clamar para mim”, quando tivemos que enfrentar o medo e descer a ladeira do morro São José até a Praça do Cauê para chamar a polícia.

As mortes do José Barti e do Sérgio me ensinaram que somos muito pequenos diante da trama da vida e que ela transcende ao tempo e às diferenças

Voltando ao Domingo de Ramos, iniciamos a procissão e quando chegamos à avenida Serafim Derenzi, fui informado que um jovem tinha sido assassinado em frente ao Bar do Barão. Um turbilhão de sentimentos e pensamentos tomou conta de mim e decidi celebrar a segunda parte da liturgia ali mesmo, junto ao corpo assassinado, embora receoso das consequências daquele ato. Mas, tão logo paramos a procissão, os familiares e amigos do jovem assassinado foram chegando e participaram da celebração.

Padre Kelder reza missa em frente ao corpo de Sérgio Rodrigues dos Santos
Padre Kelder reza missa em frente ao corpo de Sérgio Rodrigues dos Santos Foto: Marcos Fernandez/Arquivo

A liturgia do dia enfatizava a paixão e morte de Jesus. Durante o restante do dia, o bairro foi tomado por um silêncio profundo. Muitas atividades aconteceram no decorrer da Semana Santa enfatizando a morte do jovem pedreiro Sérgio Rodrigues dos Santos, era este o seu nome.

A morte de Sérgio influenciou muito a região. O Bar do Barão fechou durante semanas e quando abriu não conseguiu mais ter o movimento anterior. Hoje, funciona um restaurante no local. Anos depois fiquei sabendo que o bar era arrendado para o pai de uma jovem que me ajudava muito nas atividades da paróquia.

As mortes do José Barti e do Sérgio me ensinaram que somos muito pequenos diante da trama da vida e que a vida transcende ao tempo e às diferenças. Hoje compreendo que naquela manhã de domingo um ato de violência me fez ser o ponto de interseção de duas vidas que sequer conhecia pessoalmente.

*O autor é vigário episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória