Paulo Bonates

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A língua e a língua

A língua é o objeto de relação que mais se impõe na ligação do corpo e da mente: ela goza e fala, ela goza e degusta, tudo isso ao mesmo tempo


*Paulo Bonates

Sou um professor mais ou menos. Mesmo assim invento modas e ouso reler meus próprios escritos perseguindo dúvidas para encontrar as próximas. Obrigar-se a ter certezas é o caminho da extrema pobreza.

Durante estes anos de trabalho com o outro, fico paralisado sempre na dúvida sobre o ponto onde encontram-se corpo e mente. A medicina não abre mão de separar uma coisa da outra. Às vezes, escrevo que o pensamento é físico. É mesmo. Ou então não existe.

A expansão infinita do pensar dispõe de todas as coisas, cada pensamento de um jeito, sem repetição, o que nos leva para o movimento. Pensar tentando repetir seria querer tornar as coisas iguais e estanques. O pensar é o infinito dentro do corpo, mesmo quando se desarruma um pouco, caso dos que são escolhidos para fazer papel de doido.

A língua é o objeto de relação que mais se impõe na ligação do corpo e mente no meu modesto pensar: ela goza e fala, ela goza e degusta, tudo isso ao mesmo tempo. O que muda na sua vida, senhora, é o tempo, não perca tempo. Há de existir trilhões de “línguas” espalhadas pessoa adentro, pessoa afora.

Por exemplo, douto amigo, decifre esta frase: “Fulano não fala coisa com coisa”. Talvez ele tenha apenas criado a cada instante uma língua, que não compartilha com nenhuma outra, claro, porque estas estão na nuvem da certeza e da repetição.

Muita gente boa organiza-se em templos e suas inexoráveis leis que só obedecem a Deus, que no fundo no fundo são eles mesmos. Lá é o lugar sagrado de parar de Ser para fazer. É por aí que mora a cega certeza. Seria cômico se não fosse trágico.

Apareceu no Bial um cara porreta que rimava coisas soltas. A torcida frenética no palco seguia-o como zumbis ritmados. O camarada mostrava o nonsense como novo. O ritmo fazia parte do conjunto juntamente com letras quebradas. Tentava misturar ser e não ser.

Lembrei de Luiz Chiozza quando tenta explicar por que adoecemos. Diz ele que o jeito mais simples de responder isso é pensar que estamos vivendo uma história, um episódio que não podemos suportar e então reprimimos. Aparece a história que se oculta no corpo. Os sintomas expressam o reprimido, que mesmo encoberto representa esse episódio, uma tentativa simbólica de modificar essa história traumática que não pôde ser resolvida suficientemente.

Então tem muita importância poder aproximar à consciência o que gerou a necessidade de adoecer.

Perdoe-me repetir o constante na clínica médica: quando alguém não chora, o corpo chora. Às vezes tagarela a ponto de morrer.

*É psicanalista, médico e jornalista

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