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Juventude sem graça nem gracinha

Só há uma coisa mais deprimente do que uma pessoa maior de 30 anos que ainda cultive ideias revolucionárias: uma pessoa com menos de 30 que nunca sonhou em mudar o mundo


Falecida em 2012, aos 83 anos, a apresentadora de TV Hebe Camargo era considerada uma dondoca deslumbrada e inculta, que chamava a tudo e a todos, sem nenhum critério, de “gracinha”. Politicamente, suas opiniões refletiriam a mentalidade da elite conservadora de São Paulo. Essa visão da crítica era parcialmente correta. Mesmo assim, foi essa mesma Hebe que, em 1987, deu uma histórica entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, na qual deixou algumas respostas que surpreenderam jornalistas, público e “a tradicional família brasileira”. Corajosamente, a grande dama da televisão admitiu que já havia realizado um aborto (sem fazer apologia disso) e defendeu, por exemplo, o respeito a homossexuais: “São seres humanos iguais à gente. Têm pais, mães, irmãos. Trabalham. Pagam seus impostos”.

No dialeto da juventude atual, Hebe “mitou” no Roda Viva. Só faltou mandar um beijinho no ombro para os entrevistadores. Para os brasileiros mais jovens, que não a conhecem e que aliás nem sequer possuem o hábito de ver programas na TV aberta, a entrevista completa pode ser encontrada no YouTube.

Ironia das ironias, Hebe, tida como conservadora, professava, há 30 anos, ideias que hoje seriam reprovadas e receberiam um “não curti”, uma carinha brava ou até enojada de uma legião de jovens brasileiros que não saem do YouTube, do Facebook etc. para se manterem (des)informados. Inversamente, boa parte dessa mesma geração, tão vanguardista no uso de novas tecnologias digitais, tem manifestado atualmente uma mentalidade que não seria aprovada e não mereceria um “joinha”, muito menos um “gracinha”, nem mesmo da “conservadora” Hebe Camargo; uma visão de mundo profundamente conservadora, reacionária até, em temas que dizem respeito a costumes, cultura e comportamento.

Só há uma coisa mais deprimente do que uma pessoa maior de 30 anos que ainda cultive ideias revolucionárias e a utopia de conseguir transformar radicalmente o mundo a sua volta: uma pessoa com menos de 30 que nunca sonhou em mudar o mundo, que prefere manter tudo exatamente como está ou cujo “sonho” na verdade é regredir a um estágio anterior de evolução da sociedade onde seria possível reencontrar um mundo ideal perdido e reconciliar-se com ele. Em outras palavras, estranho ver um jovem com cabeça de velho. Mais estranho ainda é ver tantos jovens com cabeça de velho. E aí é incontornável: é preciso analisar o Movimento Brasil Livre (MBL).

Usando com extrema eficácia – talvez como ninguém no país – as novas estratégias de comunicação em massa via redes sociais, o MBL nasceu como um movimento que se pretendia o “novo” em matéria de valores políticos e de mobilização da sociedade em torno de bandeiras éticas. Acima de tudo, nasceu pregando a aplicação das teses do liberalismo econômico (Estado mínimo, privatizações etc.), as quais continuam firmes em sua plataforma. Mas esta se expandiu em uma direção inesperada.

Matéria do “El País Brasil” publicada em dezembro de 2014 mostra que, nos primórdios, os líderes do MBL não tinham posição consensual ou evitavam se manifestar como grupo sobre temas como aborto, casamento gay, criminalização da homofobia e redução da maioridade penal (agenda cara à bancada evangélica no Congresso). “Não é o foco do grupo” ou “Não está na nossa pauta” eram as respostas dos ativistas, que àquela altura não queriam descartar seguidores.

Liderado por jovens oriundos sobretudo de São Paulo, o coletivo cresceu rapidamente e teve participação destacada na organização de protestos pelo impeachment de Dilma. Aí vieram Temer, Joesley, delação da Odebrecht, a derrocada do PSDB, Aécio, as denúncias contra o próprio presidente... O povo ficou saturado, a pauta anticorrupção se derreteu, amalgamando quase todos os políticos no mesmo mar de lama. O MBL, então, deu um cavalo de pau na Paulista e passou a radicalizar em uma nova (?) agenda, de cunho moral, ou melhor, moralista, “em defesa da família brasileira”.

Incrivelmente, o ultraconservadorismo passou a ser propagado por líderes e “digital influencers” que não tinham nascido quando Hebe deu aquela entrevista. Fora de época, o conservadorismo volta à moda, à moda brasileira. Entre os jovens.

Neoconservadorismo juvenil: a junção do MBL com Magno

A internet hoje está inundada por jovens brasileiros espalhando um discurso narrow-minded (mente estreita), mais quadrado que a tela de seus smartphones, de fazer inveja a madres superioras de colégios de freiras: garotos arvorando-se em baluartes da “moral e dos bons costumes”. Criticam o “politicamente correto” dos discursos de combate a variadas formas de discriminação. O Brasil, alegam, teria ficado “chato”. Olha, é difícil pensar em algo mais “chato” do que um jovem do MBL posando de guardião das criancinhas e pregando contra “a destruição das nossas famílias” por causa, por exemplo, de uma exposição de arte.

O que o MBL tem de liberal ao extremo quando a pauta é o papel e o tamanho do Estado, tem de extremamente reacionário em matérias relacionadas a costumes e comportamento. Na economia, libere-se. Na cultura, proíba-se. Como explicar? Eles mesmos sem querer deram a resposta em reportagem de 3 de outubro da revista Piauí, que teve acesso a mensagens trocadas por líderes do grupo via WhatsApp.

Essa retórica ultraconservadora é parte da estratégia eleitoral traçada pelo grupo: colar na bancada evangélica para conseguir “penetrar” (desculpe, família brasileira) na classe C, onde a bandeira de redução do Estado não ganha a menor ressonância, e atrair a simpatia e os votos desse eleitorado, desde já, visando eleger seus candidatos em 2018, especialmente João Doria à Presidência. Em termos práticos, a síntese disso tem sido uma espécie de casamento esquisitíssimo de Kim Kataguiri com Magno Malta.

Proibidão, ok

Algumas contradições são flagrantes. Líderes do MBL se batem pelo fechamento de exposições que, segundo alegam, contêm “pornografia” e incentivam a erotização das crianças. Os mesmos líderes festejaram e compartilharam entrevista do funkeiro Mr. Catra, cuja especialidade são “proibidões” (letras obscenas) celebrando orgias e a prática do adultério. Na tal entrevista, dada a uma rádio, Catra (um homem negro) nega o racismo no Brasil e se diz “salvo pelo branco”.

Beijinho no ombro

Catra faz Valesca Popozuda parecer realmente uma “grande pensadora”.

Evangelização

Outra contradição é a escolha feita pelo MBL de Magno Malta (PR) como uma das suas referências positivas no Senado, justamente porque as ideias do senador em matérias educacionais, culturais e comportamentais vão ao encontro do conservadorismo praticamente evangélico que o movimento assumiu.

Magno, o sedento

Acontece que, na sua principal agenda (a minimização do papel do Estado), o MBL é um crítico ferrenho de práticas como o fisiologismo e o loteamento da máquina pública por aliados políticos no lugar da meritocracia. Uma crítica correta. Acontece que Magno se mostra um fiel praticante daquilo que o MBL critica, haja vista seu histórico de nomeações no Dnit e a pressão feita sobre Max Filho após a eleição de 2016 – “Quem chega primeiro bebe água limpa”, chegou a dizer na cara do prefeito recém-eleito de Vila Velha, em comício realizado logo após a vitória eleitoral, para lhe cobrar de público espaço para aliados em sua futura gestão.

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