> >
Mandados coletivos são abusivos?

Mandados coletivos são abusivos?

Medida para atuar durante a intervenção na área de segurança pública do Rio foi um pedido do Exército ao governo federal e é defendida para garantir a ordem, mas levanta questões sobre sua constitucionalidade

Publicado em 24 de fevereiro de 2018 às 23:37

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Brasília - O ministro da Defesa, Raul Jungmann, e o comandante Militar do Leste, General Braga Netto, em entrevista coletiva sobre o decreto de intervenção no Estado do Rio de Janeiro (Marcelo Camargo/Agência Brasil). (Marcelo Camargo/Agência Brasil)


Necessidade de resguardar a ordem

Ricardo Matos de Souza | É advogado, professor universitário e doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais

A decisão do governo federal que possibilita a expedição de mandados de busca coletiva e de prisão, através do Exército brasileiro, no Estado do Rio de Janeiro neste período de intervenção federal, coloca em debate várias questões de ordem constitucional e sociopolítica do país, na medida que possibilita a esses agentes, representantes do poder público e da força estatal, uma atuação para apuração de práticas ilícitas, sob a justiça de “busca da ordem”, principalmente quando se reconhece a necessidade de diminuir os índices de violência daquele Estado.

Dessa forma, a justificativa do governo corrobora a ideia delineada no decreto de intervenção, especialmente, serve para facilitar o trabalho desses agentes públicos e a localização das áreas de condutas ilícitas. Apesar da adoção dessas medidas extremas colocarem em xeque a construção ideológica e histórica de uma série de direitos que, a “duras penas”, foram conquistados tendo como marco o período da redemocratização brasileira e como fruto desse período a Constituição Federal de 1988, a depender da interpretação que é empregada, não se vislumbra ilegalidade.

A medida adotada se revela polêmica, diante das inúmeras situações de anormalidade e arbitrariedade que podem ocorrer, ocasionando, inclusive, a responsabilidade do Estado por direitos dos cidadãos que, por acaso, tenham sidos violados. É fato que a adoção dessas medidas não surge sem uma análise prévia, em que certamente foram contrapostos os riscos e resultados, estabelecendo uma balança entre ambos. Acrescenta-se ainda que a liberdade permanece como a regra, sendo a prisão utilizada apenas para os casos extremos em que esteja caracterizada a prática de ilícitos.

Conquanto existam diversos críticos dessa medida adotada pelo governo, aqueles que reconhecem o Estado Democrático de Direito enquanto norteador da atuação estatal brasileira devem refletir a respeito da necessidade de resguardar a ordem, enquanto bem maior, razão pela qual impõe-se a medida extrema, ainda que em um curto período, até que a situação de normalidade seja retomada. E ao agente atribui-se a necessidade de afastar qualquer discricionariedade em sua atuação, sem que estejam caracterizados os mínimos indícios da sua conduta ilícita.

Em suma, se efetivamente existem entraves para que sejam localizadas as residências nas quais se desenvolvem as atividades ilícitas, argumento apresentado pelo governo, surge a evidente necessidade de que sejam utilizados outros mecanismos mais eficientes para que possam, sem minimizar direitos constitucionais, autorizar a persecução penal e punir os infratores. Desde que seja estabelecido o devido local e exista uma justificativa legal, tal como se idealiza na medida.

Clara criminalização da pobreza

Homero Mafra | É presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional Espírito Santo (OAB-ES)

A intervenção na segurança no Rio de Janeiro - por si só discutível - suscita outras importantes discussões. É que ao defender a necessidade da intervenção, o ministro Raul Jungmann - o mesmo que defende a gravação das conversas entre advogados e clientes nos parlatórios - sustenta a necessidade da expedição de mandados de busca coletivos, o que dará poderes ao Exército e à polícia para devassarem e varejarem toda e qualquer casa, independentemente de fundada suspeita ou não. Em outras palavras: medida clara de criminalização da pobreza.

No campo jurídico, a proibição da expedição de mandados de busca e apreensão genéricos é matéria praticamente incontroversa, a ponto de o professor Guilherme de Souza Nucci, insuspeito de excessos liberais, ao comentar o art. 240 do Código de Processo Penal, afirmar: “Não é possível admitir-se ordem judicial genérica, conferindo ao agente da autoridade liberdade de escolhas e opções a respeito dos locais a serem invadidos e vasculhados. Trata-se de abuso de autoridade de quem assim concede a ordem e de quem a executa, indiscriminadamente”.

Aliás, se o ministro Jungmann e os comandantes militares que falam em mandado de busca coletivo tivessem tido o cuidado de pesquisar a orientação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sobre o tema, teriam visto que aquele tribunal já disse que “a casa constitui a própria extensão da pessoa, o seu refúgio, onde exerce livremente o seu direito fundamental à intimidade e à vida privada, inseridos na própria concepção de dignidade humana, alicerce do Estado Democrático de Direito e objeto de proteção de diversas normas internacionais de caráter supralegal, a citar o artigo 11, 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Outrossim, a autorização judicial de busca domiciliar não deve ser proferida ao alvedrio do magistrado, mas encontra seus requisitos e parâmetros expressos, previamente definidos pelo legislador, exigindo-se a demonstração de fundadas razões para autorização da medida, de sua necessidade e adequação, bem como a indicação precisa da casa em que será realizada a diligência e o nome do proprietário ou morador.”

A gravidade da situação não nos pode conduzir à adoção de soluções que afrontem os direitos fundamentais, como é o caso da adoção de mandados de busca coletiva. Porém, o mais grave é o ataque contra a Constituição e os direitos fundamentais. Nesse particular, dois fatos são expressivos: o pedido que os militares tenham tratamento especial, evitando “que casos envolvendo militares sejam levados à Justiça comum...“ e o fato de que nas comunidades de Vila Kennedy, Coreia e Vila Aliança o “Exército fotografa moradores que saem de comunidades ocupadas no Rio” que “só podem deixar a região após passarem pelo cadastramento das Forças Armadas”. O que se vê: a população como inimiga e a criminalização da pobreza.

Este vídeo pode te interessar

Portanto, mais que nunca é preciso defender a Constituição, o Estado de Direito Democrático e os direitos fundamentais. Mais que nunca, tem a advocacia o dever de ser a voz contramajoritária e de defender os direitos fundamentais, nesses tempos difíceis que estamos vivendo.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais