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Há limite para a privacidade na web?

Há limite para a privacidade na web?

A desinformação deliberadamente disseminada pelo WhatsApp durante a campanha eleitoral reacendeu o debate sobre o anonimato na internet. Confira abaixo opiniões de especialistas

Publicado em 28 de outubro de 2018 às 01:01

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(A Gazeta)

 

Sigilo é regra, mas não pode ser absoluto

Cláudio Colnago é professor de Direito. Doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV

Não é de hoje que a sociedade brasileira se vê diante de um impasse: determinações judiciais que não são cumpridas por provedores de aplicação de internet, ora sob o argumento da impossibilidade tecnológica, ora escudando-se em diferentes concepções acerca do alcance de determinados direitos fundamentais. Devido à sua popularidade e características, uma questão em particular vem sendo objeto de atenção: devem os usuários do WhatsApp, conhecido aplicativo de troca de mensagens, ter direito ao anonimato, ou poderiam as autoridades policiais ter acesso ao conteúdo das mensagens trocadas?

Há quem parta para uma solução ampliativa do sigilo de dados. Esse não foi, porém, o caminho trilhado pela Constituição de 1988 que, adotando uma concepção responsável de livre expressão, determinou que esta última deve ser a regra, embora esteja claramente proibido o anonimato.

Outro ponto a ser analisado diz respeito à localização geográfica dos provedores de aplicação. O Marco Civil da Internet resolve bem essa questão, ao estabelecer que em qualquer operação de tratamento, guarda, armazenamento ou coleta de dados, basta que qualquer um desses atos ocorra no território nacional para que a lei brasileira seja aplicável. Isso faz com que os provedores de aplicação, mesmo com sede no exterior, sujeitem-se à legislação nacional, o que assume especial relevo quando se cogita da interceptação de comunicações privadas.

A Constituição foi didática ao garantir que é a todos assegurado o sigilo de dados e das comunicações telefônicas, ressalvada a possibilidade de autorização por ordem judicial fundamentada, “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Dito de outra forma: o Constituinte fixa o sigilo como regra, mas entende que ele não pode ser absoluto, na medida em que é necessário apurar eventuais crimes cometidos com o uso da tecnologia.

A lei em questão é a 9.296/96, que estabelece uma série de condicionantes e salvaguardas para fins de autorização judicial de interceptação de dados: demonstração de sua imprescindibilidade, indicação dos meios a serem empregados, fundamentação jurídica da decisão e prazo máximo de 15 dias (renováveis). Assim, verifica-se que, sob o prisma jurídico, há poucos fundamentos que deem suporte a um sigilo absoluto de qualquer tecnologia de comunicação, em especial do WhatsApp. Isso não significa que o sigilo de dados seja aniquilado, na medida em que o constituinte e o legislador adotaram o saudável termo médio, tão ausente em nossas relações pessoais (e políticas) no ano de 2018.

Direito à intimidade é conquista civilizatória

Leonardo da Rocha de Souza é advogado criminalista

O WhatsApp é um aplicativo de mensagens instantâneas e chamadas de voz. Em termos gerais, as conversas configuram comunicação e, assim, estão protegidas pelo sigilo garantido na Constituição de 1988, a Constituição cidadã. No seu artigo 5º, inciso X, integrando a categoria dos direitos da personalidade, prevê como garantias ao cidadão a inviolabilidade da intimidade, do sigilo de correspondência, dados e comunicações telefônicas, salvo ordem judicial.

Tais garantias estão umbilicalmente ligados à dignidade da pessoa humana, que, por sua vez, constitui um fundamento de nosso Estado de Direito, conforme expresso no art. 1º, III também da nossa Carta Magna. Em sintonia com esses ideais garantistas, a lei n. 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, em seu art. 7º, inciso I, assegura aos usuários os direitos para o uso da internet no Brasil, entre eles, o da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, do sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, bem como de suas comunicações armazenadas.

Pois bem! O argumento do direito à segurança pública previsto no artigo 144 da Constituição Federal de 1988 ou da “ordem pública e bem comum” são muito utilizados por aqueles que defendem o afastamento do sigilo do WhatsApp e por consequência a mitigação do direito fundamental à intimidade e da vida privada previstos no artigo 5º, X da Constituição de 1988. Não obstante é sempre bom lembrar que os mesmos argumentos foram e são comumente utilizados ao longo do tempo para que regimes autoritários e absolutos fossem estabelecidos ou mantidos e, em consequência disso, direitos e garantias individuais fossem e sejam afastados. O resultado a história já provou que não foi bom para a humanidade e continua não sendo. Assim, num juízo de ponderação entre os institutos da segurança pública ou ao direito de informação e o direito fundamental da intimidade e da vida privada, no meu entendimento, este deve prevalecer. É o preço que se deve pagar para que vivamos numa sociedade livre.

É sempre bom lembrar que a existência da Constituição surgiu justamente como meio de contenção e proteção do cidadão perante as ações do Estado, numa função contramajoritária. Nesta toada, a importância do direito à intimidade e à privacidade faz-nos lembrar serem estas também uma resposta a todas as iniciativas de violação de direitos individuais perpetradas pelo Estado ou mesmo pelo particular, seja na violação da propriedade privada, seja na inviolabilidade de domicílio, na violação da imagem, entre outros tantos.

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A garantia, preservando-se o sigilo na comunicação via WhatsApp, tem um preço!!!! Não se nega que em algumas situações, como no caso de pessoas que abusam desse direito em ações criminosas ou mesmo desrespeitosas, a sociedade pode ser prejudicada pela proteção à intimidade do indivíduo. Mas com respeito e muita fé, que não costuma falhar como já disse Gilberto Gil, haveremos de encontrar meios eficientes de combater tais desvios e assim continuar nossa marcha civilizatória, prestigiando os direitos individuais como uma conquista humanitária inegociável.

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