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Alunos têm direito de gravar aulas?

Alunos têm direito de gravar aulas?

Campanha que incentiva estudantes a registrarem as aulas para denunciar docentes por eventual doutrinação ideológica foi alvo de manifestações contrárias da Justiça e do Ministério Público

Publicado em 25 de novembro de 2018 às 12:43

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A TRANSPARÊNCIA SE IMPÕE

Miguel Nagib é advogado e criador do projeto Escola Sem Partido

Nada impede o estudante de gravar suas aulas (ou seus pais de fazê-lo por seu intermédio). Qualquer proibição nesse sentido teria de ser imposta por meio de lei. E seria manifesta a inconstitucionalidade de uma lei que estabelecesse tal proibição – não se deve confundir com as leis que proíbem, por razões exclusivamente pedagógicas, o uso de telefone celular em sala de aula.

Primeiro, porque a administração está sujeita ao princípio da publicidade (Constituição Federal, art. 37, caput). O que acontece dentro de uma repartição pública – e a sala de aula nada mais é do que uma repartição pública – não deve ser, em princípio, segredo para ninguém. A transparência se impõe.

Segundo, porque uma lei como essa poderia representar um obstáculo ao cumprimento do dever imposto aos pais pelo art. 229 da Constituição: criar e educar os filhos menores. Há de entender-se que a esse dever dos pais corresponde o poder de acompanhar, tão de perto quanto possível, a vida escolar dos seus filhos menores.

Terceiro, porque seria totalmente desarrazoado negar aos destinatários de uma fala o direito de registrá-la, com o objetivo de reconstituir a verdade, se e quando necessário – principalmente se esses destinatários são crianças ou adolescentes, indivíduos a quem a Constituição assegura proteção integral e prioritária. No Supremo Tribunal Federal (STF), aliás, é pacífico o entendimento de que a gravação ambiental, realizada por um dos interlocutores, mesmo sem o conhecimento do outro, constitui ato lícito. Assim, ainda que o estudante fosse surpreendido fazendo uma gravação sem o conhecimento do professor ou da escola, ele não poderia ser punido por isso.

A gravação se legitima também, obviamente, por razões pedagógicas, ao permitir que o estudante assista novamente a uma aula com o objetivo de fixar o conteúdo transmitido pelo professor.

Seria, por fim, um completo absurdo que os consumidores dos serviços prestados pelas escolas – isto é, os pais dos alunos – ficassem impedidos de conhecer e avaliar a qualidade desses serviços.

A gravação pode ser ou não precedida da comunicação formal à escola e ao professor. No primeiro caso, se qualquer deles se opuser à iniciativa, a saída será recorrer à Justiça, pela via do mandado de segurança; ou à gravação “clandestina” – que é pior para o professor e para a escola, mas é legítima, segundo o entendimento do STF.

É claro que isso exige disposição para lutar por seus direitos. Mas, se nada fizermos para defendê-los, eles continuarão a ser pisoteados por militantes que usam a sala de aula para fazer a cabeça dos nossos filhos e usá-los como massa de manobra a serviço de sindicatos e partidos de esquerda.

Seria desejável que as próprias escolas fizessem essas gravações? A questão contrapõe os interesses corporativos dos professores aos dos usuários dos serviços que eles prestam. Como pertencemos ao segundo grupo, nossa resposta é um grande e sonoro sim! Principalmente na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Um Estado que obriga os pais a mandar seus filhos para a escola a partir dos 4 anos de idade não lhes pode negar o direito de saber o que está acontecendo lá dentro. A tecnologia tornou isso possível a um custo baixíssimo, retirando das escolas e do poder público qualquer escusa legítima para negar aos pais esse direito.

ESTRATÉGIA PARA MINAR LIBERDADE DE CÁTEDRA

Gilda Cardoso de Araujo é doutora em Educação pela USP e professora da Ufes

Cátedra é expressão que deriva do latim (cathedra). Na tradição cristã, a cátedra representa a alta autoridade eclesiástica, cuja inspiração é Cathedra Petri ou Cadeira de Pedro, relíquia católica que está na Basílica de São Pedro, em Roma. Como símbolo das palavras de um mestre e da sabedoria, inspirou o paralelo com o direito de professar conhecimentos e ideias e, por conseguinte, com a natureza da atividade docente.

O direito de professar conhecimentos e ideias pressupõe um ethos democrático de respeito e de confiança que só pode ser viabilizado pelo diálogo, uma vez que a inteligência, a criatividade e o crescimento individual requerem pactuação pedagógica num clima não ameaçador.

Com 32 anos de magistério, formei e continuo formando gerações em todas as etapas e níveis de ensino. Já colaborei com a imprensa para debater temas como a avaliação, o financiamento, a formação de professores, a falta de vagas em creches, o abandono escolar, a baixa atratividade da carreira docente, entre outros que permanecem como graves problemas a serem enfrentados pelos governantes em todas as esferas administrativas.

Contudo, em vez de um desses temas assumirem a centralidade no debate, dadas as expectativas de mudanças com os novos governos, a pauta de hoje é tristemente peculiar: alunos têm “direito” de gravar aulas? Com minha autorização, bem como com o respeito e a confiança indispensáveis ao pacto pedagógico, às claras, eu já permiti a gravação das minhas aulas para fins exclusivos de aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem. Mas não é disso que se trata.

Na pergunta sobre o “direito” de gravar aulas dos alunos está o pressuposto que fere de morte a liberdade de cátedra e a dignidade da atividade docente. A instalação de um clima de pânico moral tem servido para cercear os princípios de liberdade de cátedra e do pluralismo pedagógico (art. 206 da Constituição), com a promoção da censura e da autocensura de docentes.

Aqueles que incitam a gravação e a denúncia de docentes se manifestam de forma a minar o respeito e a confiança basilares ao pacto pedagógico, como pode ser constatado pelas recentes declarações do senhor Olavo de Carvalho, um dos próceres do denuncismo e da censura, para quem os professores que não permitem a gravação de suas aulas estariam reivindicando “sigilo no serviço público”, havendo apenas três motivos para tanto: comunismo, incompetência ou pedofilia. De forma torpe, chega ao ponto de afirmar que “impedir o aluno de gravar o que estão ensinando é censura exercida em massa por essa cambada de manipuladores”.

Trata-se de estratégia deliberada e desrespeitosa para enterrar a liberdade de cátedra. Na história recente, a liberdade de cátedra foi alvo de estratégias similares, das quais a humanidade se envergonha, tais como o Macarthismo, em alusão à campanha de perseguição dirigida aos professores dos EUA por Joseph Raymond McCarthy e seus discípulos, no período entre 1946 e 1956, e a Revolução Cultural na China, liderada por Mao Tsé-Tung a partir de 1966, que teve a educação como principal alvo, estimulando que alunos denunciassem seus professores.

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Nada justifica a sanha por criminalizar a árdua tarefa de educar. Aqueles cidadãos preocupados com a melhoria da educação do país deveriam utilizar seus celulares para gravar e denunciar as péssimas condições de infraestrutura das escolas, a falta de equipamentos e materiais adequados, a vergonhosa política de remuneração e de carreira que sacrificam a vida de milhares de docentes, agora tratados, sem qualquer pudor, como “cambada”.

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