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Acordos penais, conhecidos como 'plea bargain', são viáveis no Brasil?

Acordos penais, conhecidos como "plea bargain", são viáveis no Brasil?

Modelo popular nos EUA que promove acordos entre a acusação e o réu, que se declara culpado em troca da redução de pena, é uma das propostas do ministro Sérgio Moro

Publicado em 8 de março de 2019 às 22:21

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(Amarildo)

 

Risco para acusados mais vulneráveis

Fabrício Campos é advogado criminalista e mestre em Direito, Estado e Cidadania

A proposta do Ministério da Justiça sobre as “soluções negociadas” no processo penal adapta ao nosso ambiente os acordos penais que os tribunais norte-americanos chamam de “plea bargain”. O acusado confessa o delito, abre mão de sua defesa, de recursos e em troca recebe uma pena mais leve, evitando para o réu o desgaste de todo o processo e, para o Poder Judiciário, o custo de mobilização de um sistema congestionado.

Na origem, a “barganha” tem um histórico sinistro. Nos Estados Unidos, esses acordos eram uma prática ilegal que aumentava ou diminuía conforme necessidades pontuais de desafogar o sistema criminal em períodos de alta criminalização, como por exemplo durante a lei seca. Somente em 1970 (Caso Brady v. United States) a Suprema Corte passou a aceitar, com ressalvas, a negociação. Admitiu a prática como uma forma de desafogar os tribunais, com a incontrolável condição de que o acusado tivesse contra si evidências muito fortes. Poucos casos de abusos são discutidos nas altas cortes americanas e, como resultado, mais de 95% das acusações criminais terminam negociadas. Esse cenário mostra que sob o argumento de aliviar o sistema, cria-se potencial injustiça com acusados menos favorecidos, aumenta-se o risco de insegurança jurídica e torna comum o risco de falsas confissões.

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O pior é que há fortes evidências de que, pressionados pelo risco de uma punição, mesmo acusados inocentes podem optar pelo plea bargain, como revelou um estudo publicado em 2013

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Acusados com defensores menos preparados ou não especializados tendem a evitar o enfrentamento do processo até o fim. Essa condição foi particularmente destacada num estudo publicado por alunos da Universidade de Harvard em 2007.

Essa forma de saída negociada também causa insegurança jurídica. Enquanto casos semelhantes tendem a receber punições parecidas, as particularidades (ou a pressa, os interesses, a fase da lua etc.) de cada acordo podem gerar diferenças graves entre um acordo e outro.

Mas o pior é que há fortes evidências de que, pressionados pelo risco de uma punição, mesmo acusados inocentes podem optar pelo plea bargain, como revelou um estudo publicado em 2013 no Journal of Criminal Law & Criminology. Universitários, desconhecendo que estavam numa pesquisa criminológica, foram falsamente acusados de colar num teste de lógica. Mais da metade (56%), mesmo diante de uma acusação falsa, optou por cumprir uma pena disciplinar menor, em lugar de enfrentar um colegiado. E é um fato: fora do laboratório, são inúmeras as revelações de inocentes que aceitam negociar a pena, como na vergonhosa barganha que o Departamento de Justiça fez no processo contra a fabricante de semicondutores Broadcom ou no caso West Memphis Three, envolvendo uma imaginária seita satânica.

O plea bargain põe em risco acusados mais vulneráveis e traz insegurança, mas o pior é incorporar a punição de inocentes como algo corriqueiro. Ninguém admite a comercialização de um medicamento que pode matar metade dos pacientes, mas o Ministério da Justiça pretende vender um remédio barato cujos efeitos insuportáveis podem ser ignorados até que os danos se tornem irremediáveis.

Que o réu escolha a melhor estratégia

Américo Bedê Junior é professor Doutor na FDV e juiz federal

Um dos temas que vem mais causando reação ao projeto de Moro é a ampliação dos espaços de acordo no processo penal. O projeto prevê duas formas distintas: antes do início do processo, limitado para os crimes cuja pena máxima não seja superior a quatro anos, e após o recebimento da denúncia, para qualquer crime (inclusive os dolosos contra a vida). O modelo de acordo no processo penal (com várias hipóteses e peculiaridades) é utilizado em mais de 90% dos casos nos EUA.

O Conselho da Europa expediu recomendação em 1987 para que os países adotassem procedimentos de acordo do processo penal, e a corte europeia de direitos humanos pacificou o entendimento de que a possibilidade de acordo no processo penal não viola direitos fundamentais do acusado.

Será que só aqui, no nosso país, o modelo será considerado violador de direitos humanos? E mais, em terras brasilis, nós já temos espaços de consenso desde 1995 para os crimes de menor potencial ofensivo, além da colaboração premiada, cuja constitucionalidade já foi reconhecida pelo STF, cabível para qualquer crime.

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É melhor uma pena aplicada imediatamente, mesmo que menor, que uma pena que perde quase todas as suas funções quando imposta anos depois

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O acordo é benéfico para todos os atores processuais penais. Para o réu, uma redução de pena ou regime de cumprimento mais benéfico. No que tange à sociedade, é melhor uma pena aplicada imediatamente, mesmo que menor, que uma pena que perde quase todas as suas funções quando imposta anos depois. A análise econômica do direito também justifica a adoção do modelo, uma vez que se reduz o custo do processo para que o Estado aplique pena.

Por outro lado, não existe nenhuma crítica ou risco do modelo do acordo que também não possa ser aplicável ao modelo do julgamento de provas exauriente.

É claro que deve existir um controle sobre existência de provas contra o réu, bem como a sua confissão, e se exigir que o Ministério Público atue com transparência e lealdade, mostrando de fato as provas que possui naquele momento negocial.

Evidentemente que não existe uma bala de prata no combate ao crime. O modelo de acordo não será a solução para todos os graves problemas de segurança pública de nosso país, mas ele pode ajudar a dar mais racionalidade e efetividade ao sistema criminal, sendo, ao mesmo tempo, um instrumento de defesa que permite um benefício ao acusado.

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Por fim, devemos lembrar o grave problema que é o denominado paternalismo jurídico. Muitas vezes, pretendemos estabelecer, similarmente à figura paterna, o que é o melhor ou o pior para uma pessoa adulta, ignorando o seu direito à autodeterminação e à liberdade. Aqueles que não querem o acordo não são obrigados a aceitar a proposta e têm garantido o processo. Por que razão, então, pretende-se impedir que o indivíduo avalie, conjuntamente com seu advogado, e usufrua das vantagens do acordo? O sistema é facultativo, depende da voluntariedade do réu, não há motivos, nem legitimidade para vedar a possibilidade do acordo. A pretexto de saber o que é o melhor para o réu, os críticos preferem impedi-lo de aceitar o acordo e, na prática, obrigá-lo a sofrer as angustias de ser réu e de suportar uma pena maior. Chega de bem intencionados dizerem o que é o melhor para o próprio réu. Que ele, então, seja o senhor de seu destino e avalie a melhor estratégia de defesa, dentre elas, a de firmar o acordo. Para aqueles que, bem intencionados, querem impedir o acordo, lembro Agostinho Ramalho: “Quem me protege da bondade dos bons?”.

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