Nas sombras do jogo


Inocência perdida no futebol

Nas terças, quintas e sábados, Miguel* acorda cedo. Sempre às 6 horas. O objetivo? Ir em busca do seu maior sonho: se tornar jogador de futebol. O adolescente, pensando em dar um futuro melhor para a família, chega na escolinha 138 Unidos da Vale, em Vila Velha, para treinar. Antes de calçar a chuteira e vestir o uniforme do time para entrar em campo, ele é orientado pelo técnico José Luiz Teixeira Pereira a abaixar a bermuda ainda no vestiário. O treinador que agora toca em suas partes íntimas é o mesmo que lhe havia feito a promessa de levá-lo para um grande clube do futebol brasileiro. Miguel fica imóvel. Sem forças para fugir, o menino sofre nas mãos do agressor. O ritual aconteceu em quatro ocasiões.

Estava aflito, sem saber como sair de lá. Tinha medo. Ele pegava ‘lá’
Miguel, vítima de abuso

Miguel foi abusado sexualmente pelo homem que dizia que iria ajudá-lo na carreira futebolística e, ao pedir para o agressor parar, ouviu: “Você tem que deixar. Estou investindo em você”. Atormentado psicologicamente por conta das agressões sofridas, Miguel tem nesta história sua última lembrança do sonho de ser jogador de futebol. “Estava aflito, sem saber como sair de lá. Tinha medo. Ele pegava ‘lá’”.

Em 2014, mesmo ano em que o país sediou a Copa do Mundo, foi sacramentado um acordo para tentar impedir crueldades como a que abalou a família de Miguel. José Maria Marin, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), assinou um documento em que a instituição se comprometia com o Congresso Nacional a pensar estratégias para batalhar contra o abuso sexual nas categorias de base de clubes brasileiros. Porém, depois de três anos da validação, crianças e adolescentes continuam sendo violentados em escolinhas.

A violência, contudo, se torna motivo de piada entre os atletas. É o caso de Fernando, que treinou com José Luiz Teixeira Pereira por um ano e quatro meses. Alvo de chacota entre os companheiros de time que desconfiavam da situação, o jovem passou a encontrar dificuldades em fazer amizades por conta de um bloqueio psicológico. Após ter recebido a notícia de que seu filho estaria sofrendo violência sexual, a mãe do garoto não conseguiu mais dormir durante a noite.

“Meu filho estava sofrendo. Felizmente ele foi maduro, me procurou para contar a situação e eu procurei os órgãos competentes para fazer a denúncia”, pontuou.

Eles ficavam rindo quando eu passava perto deles. Fui muito zoado por ter feito a denúncia
Marcos, vítima de abuso

Mas não é somente no Espírito Santo que o sonho de virar um jogador é transformado em um pesadelo cheio de traumas. O olhar preconceituoso e acobertador colabora para que denúncias sejam ocultadas em clubes tradicionais do futebol. No ano passado, por exemplo, após ser aprovado em um time grande de Minas Gerais, Marcos* teria sido assediado por um olheiro da equipe. Aos 15 anos, o menino que diz querer jogar no Barcelona, da Espanha, procurou junto com o pai o supervisor das categorias de base daquele clube para contar o ocorrido. O desabafo de nada adiantou. Na verdade, trouxe prejuízos ainda maiores para Marcos. Além de ser dispensado duas semanas depois, a informação chegou de forma pejorativa a outros jogadores.

“Eles ficavam rindo quando eu passava perto deles. Fui muito zoado por ter feito a denúncia com o meu pai. Achamos que a diretoria iria resolver o problema, afastar o rapaz que ficava me fazendo propostas sexuais, mas nada disso aconteceu. O homem não me tocou, ficou nas palavras, mas os atletas ficaram achando que tinha rolado algo”, relata o adolescente.

Após o fato, o futuro de Marcos ficou abalado e as propostas para atuar por outros clubes nunca mais surgiram. O jovem não se arrepende de ter feito a denúncia, entretanto, lamenta não ter sido ouvido.

Foto: arte

“Estava morando sozinho lá na concentração do clube em Minas Gerais, minha família nem sempre tinha como me mandar dinheiro, e o homem achou que eu iria permitir a aproximação dele. Mas encontrei forças para rejeitar.”

Isso mesmo. Marcos foi outra vítima de José Luiz Teixeira Pereira. O que trouxe conforto para o adolescente foi ver através da televisão o homem que o aliciou ser preso pela polícia capixaba por ter supostamente abusado sexualmente de outros atletas. Procurado pela reportagem, o advogado de José Luiz não quis se manifestar sobre o caso. O defensor informou que o acusado continua preso e o processo corre em segredo de justiça.

* Os nomes foram alterados para preservar as vítimas

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José Luís está preso em Xuri

o advogado Luciano Ventura Porfírio, responsável pela defesa de José Luís, não quis comentar sobre as denúncias e a prisão do seu cliente

Antes acostumado à rotina de comandar treinos e abusar sexualmente de crianças e adolescentes, como a própria investigação da polícia garante, agora o treinador José Luís Teixeira Pereira está tendo que se adaptar com a rotina na Penitenciária Estadual de Vila Velha Cinco (PEVV 5), em Xuri. E no que depender dos acusadores, ele vai ficar preso por muito tempo.

Treinador José Luís Teixeira Pereira foi preso em abril
Treinador José Luís Teixeira Pereira foi preso em abril
Foto: Carlos Alberto Silva

A princípio, José Luís Teixeira Pereira vai responder por cinco crimes de estupro de vulnerável. Três das vítimas já identificadas têm 13 anos de idade e outras duas têm 12. Em cada um dos crimes, a pena vai de oito a quinze anos de prisão. O treinador também vai responder criminalmente por produzir e armazenar cenas ou vídeos de conteúdo pornográfico ou sexual envolvendo crianças e adolescentes (produção -quatro a oito anos / armazenamento - um a quatro anos de prisão).

Procurado, o advogado Luciano Ventura Porfírio, responsável pela defesa de José Luís, não quis comentar sobre as denúncias e a prisão do seu cliente, que teve repercussão internacional.

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Vítima não denunciou de imediato

O estudante Elvis Nunes tem 23 anos, está no terceiro período da graduação em Educação Física, trabalha como auxiliar administrativo, mas o seu grande sonho na infância era ser jogador de futebol. Elvis atuava como zagueiro, se destacava pela boa marcação, mas desistiu de tentar seguir a carreira aos 14 anos.

O motivo alegado por Elvis para uma interrupção tão precoce no esporte foi uma tentativa de assédio sexual. “É um pouco delicado de falar, mas é preciso, porque casos como esse a gente não pode deixar omitido”, argumentou o estudante.

Elvis Nunes
Elvis Nunes
Foto: Fernando Madeira

Elvis relata que treinava em uma escolinha no bairro Ibes, em Vila Velha, que na ocasião era comandada por José Luís Teixeira Pereira. O mesmo treinador que foi preso no último mês de abril, acusado de assédio contra cinco crianças e adolescentes.

O estudante revela que o assédio aconteceu em uma das noites que foi convidado para dormir na casa de José Luís. “Quando eu fui dormir, ele fez umas brincadeiras sem graça, eu cortei, fiquei de cara fechada e ele disse que não faria nada que eu não quisesse. Ele ficava querendo deitar do meu lado, fazendo carinho, coisas que geralmente nenhum pai faz com um filho. A partir do momento que ele tentou mexer no meu cabelo, tocar nos meus braços, no meu peito, eu vi as intenções maliciosas dele e falei com ele que não queria”, relembra Elvis.

Elvis ainda deu mais detalhes sobre os acontecimentos daquela noite.“Falei que, se ele fazia aquele tipo de coisa com outros atletas, comigo seria diferente. Falei que não aceitava aquele tipo de atitude. Ele ficou surpreso de ver uma criança falando daquele jeito com ele e ficou com medo de eu denunciar”, disse.

O estudante explicou que não fez nenhum denúncia na época e nem contou do caso para os seus pais porque temia que qualquer problema envolvendo a polícia atrapalhasse o andamento da sua carreira como jogador. “Não denunciei porque tinha medo e tinha a esperança de ter a carreira como jogador de futebol”, contou.

Muitos anos já se passaram após o problema, e Elvis garante que poucas vezes falou abertamente sobre isso. “Só a minha atual namorada e alguns amigos mais próximos que sabem sobre isso”, garantiu Elvis, que agora mudou de ideia e resolveu falar abertamente sobre o assunto.

“Eu acho uma necessidade alguém falar sobre isso. Se ninguém der o pontapé inicial, o problema sempre vai ser omitido, o assédio vai continuar acontecendo e várias crianças vão passar por isso. Por mais delicado que o assunto seja, deve ser falado”, Elvis argumentou.

Com planos de formalizar a denúncia contra o ex-treinador na Delegacia de Proteção à Criança e o Adolescente (DPCA), Elvis garante que, caso voltasse a encontrar com José Luís Texeira, iria exigir desculpas.

“Se eu o encontrasse hoje, eu iria perguntar se ele se lembra de mim e se ele lembra do ele tentou fazer. Se ele disser que lembra de mim, eu exigiria um pedido de desculpas e iria aconselhar para que ele parasse com essas atitudes”, finalizou Elvis.

Assim como acontece no caso de Elvis Nunes, que denunciou um caso de assédio muitos anos depois do ocorrido, outras pessoas podem seguir os mesmos passos. E isso acontece por conta de uma mudança na lei que regula a prescrição do crime de pedofilia e também o estupro e o atentado violento ao pudor praticados contra crianças e adolescentes.

Desde 2012, a contagem de tempo para a prescrição só vai começar na data em que a vítima fizer 18 anos, caso o Ministério Público não tenha antes aberto ação penal contra o agressor. Antes da mudança, a prescrição era calculada a partir da prática do crime.

“É fundamental que as pessoas nos procurem e registrem o registre o boletim de ocorrência que nos permita fazer investigações”, ponderou o delegado Lorenzo Pazolini.

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Casos acontecem em todo o Brasil

Assim como aconteceu com as várias vítimas capixabas que levaram à prisão do treinador José Luís Teixeira Pereira, os relatos de assédio sexual no esporte estão muito longe de ser um novidade.

Em 2016, por exemplo, ganharam repercussão mundial os relatos de ex-jogadores do Campeonato Inglês contra o treinador Barry Benell, que tem 63 anos e ficou preso por nove anos, quando foi declarado culpado por mais de 20 casos de abuso sexual de crianças entre nove e 15 anos.

Ex-goleiro Paulo Sérgio
Ex-goleiro Paulo Sérgio
Foto:

O problema também está nas entranhas do futebol brasileiro, mas os próprios jogadores e ex-jogadores declaram que o assunto é pouco debatido. Três grandes nomes do futebol brasileiro, o ex-goleiro Paulo Sérgio e o ex-meia Geovani Silva e o ex-atacante Sávio garantem que conviveram de perto com esse grave problema.

“Fui criado nas categorias de base do Vasco e joguei na base do Fluminense. Infelizmente, em todos os times que eu joguei, eu vi acontecer isso (o assédio). Principalmente com os atletas que eram de fora, que moravam na concentração e eram mais vulneráveis”, relata o ex-goleiro Paulo Sérgio, que esteve na Copa de 1982.

Geovani Silva, ex-jogador da Desportiva e do Vasco
Geovani Silva, ex-jogador da Desportiva e do Vasco
Foto: Vitor Jubini

De acordo com Paulo Sérgio, relatos sobre assédios eram comuns entre os jovens jogadores e também atletas de outras modalidades. No entanto, as denúncias nunca aconteciam. Na maioria das vezes, o medo de represálias era o mais responsável pela omissão.

Um dos maiores craques do futebol capixaba, Geovani Silva revela que, nos tempos de jogador, se deparou com o problema nas categorias de base do Vasco e da Desportiva. “Espero que as autoridades competentes possam dar um basta nisso tudo”, opinou Geovani.

Sávio, ex-jogador do Flamengo
Sávio, ex-jogador do Flamengo
Foto: Fred Gomes/GloboEsporte.com

O ex-atacante Sávio afirma que nunca testemunhou casos de assédio dentro das concentrações do Flamengo, mas reconhece que o problema acontecia fora das dependências do clube.

“É assunto que precisa ser mais discutido e merece mais atenção. É um caso de muita preocupação. O assédio existia, acho que sempre existiu”, disse o capixaba Sávio, que também brilhou com a camisa do Real Madrid.

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Crimes devem ser expostos

Lorenzo Pazolini, delegado da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA)

A prisão do técnico José Luís Teixeira foi realizada no mês de abril, após ação da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). De acordo com a explicação do delegado Lorenzo Pazolini, toda a investigação começou no mês de março, após um denúncia anônima.

Após a notícia de prisão, outras denúncias foram feitas contra o treinador e estão na iminência de serem formalizadas. Uma delas, de acordo com o delegado responsável pelo caso, é de um homem de 22 anos. A vítima, que agora mora em Sergipe, residia no Espírito Santo durante a infância e alega que também foi abusada por José Luís Teixeira quando jogava em uma escolinha de futebol em Vila Velha.

Lorenzo Pazolini, delegado da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA)
Lorenzo Pazolini, delegado da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA)
Foto: Dilvulgação

“Ele sempre vendia a história que iria colocar as crianças em um grande clube. Ele vendia essa imagem para a criança. Essa criança, com o sonho de mudar de vida, acaba induzida a aceitar essa situação”, explicou o delegado.

Além disso, a polícia encontrou no celular apreendido com José Luís um vídeo pornográfico com uma criança que ainda não foi identificada. “Ele se aproveitava da fragilidade financeira e emocional das crianças para tentar manter relação sexual com elas. Em alguns casos, ele chegou a consumar atos libidinosos e até o coito anal”, relatou o delegado Pazolini.

Ainda que muitas das vítimas façam a opção de não realizar as denúncias, o delegado destacou o valor do ato. “É fundamental que as pessoas denunciem, porque esse crime permanece oculto. Em muitos casos a vítima tem vergonha e receio de procurar a polícia e ver a sua situação exposta. Denunciar é fundamental”, finalizou.

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Ele rompeu o silêncio como estratégia de combate

O ex-goleiro Alexandre Montrimas tem como principal objetivo fazer com que casos de abusos sejam extintos do esporte

Ele não sofreu violência sexual e nunca teve nenhum amigo íntimo ou familiar assediado no mundo do futebol. Isso, porém, não impediu que o ex-goleiro Alexandre Montrimas, com passagens por Portuguesa e Bragantino, ficasse calado diante dos absurdos que ouvia falar. Mesmo quando ainda atuava profissionalmente, o ex-atleta resolveu romper o silêncio para colocar na parede técnicos, dirigentes e empresários que insistem em destruir sonhos de crianças, adolescentes e jovens. Após abandonar os gramados, depois de 20 anos de carreira, o atualmente palestrante e escritor viaja por todo o país trabalhando com um só objetivo: fazer com que casos de abusos sejam extintos do esporte.

Alexandre Montrimas escreveu livro para denunciar abusos no futebol
Alexandre Montrimas escreveu livro para denunciar abusos no futebol
Foto: Divulgação

Além de jogar em equipes nacionais, Alexandre Montrimas também passou pelo futebol português. Com a bagagem adquirida na Europa e baseado nas tristes histórias ouvidas no Brasil sobre alunos de escolinhas serem molestados, o ex-arqueiro resolveu investir tempo e dinheiro escrevendo um livro. A obra foi lançada em 2014 e veio para “falar o que ninguém tem coragem de falar”, como ele me diz.

“Posso afirmar com todas as letras: ‘Existem atletas sendo abusados ou assediados em todos os clubes do futebol brasileiro. Lancei o livro para tentar ajudar vítimas e seus familiares a surgir dessa situação, pois esse mal vem de todas as partes e de todos os lados. Temos provas concretas de abusos registrados nos maiores times do país. Agora, depois do livro, minha ideia é palestrar para tentarmos impedir o crime. É identificar o agressor antes que ele haja”, explicou.

Uma nova mentalidade precisa ser implantada nos bastidores do esporte. E, como ponto determinante de partida, a educação precisa andar lado a lado com a prática. De acordo com o ex-goleiro, essa deve ser a linha de planejamento para tentar ao menos minimizar as violências sexuais.

“Infelizmente têm pessoas que acham que tais crimes fazem parte do futebol. Isso não é o futebol e nem deve ser aceitável em momento algum. É crime e destrói a vida de milhares de jovens. Se não temos como prender todos os agressores, podemos preparar esses meninos para eles terem condições de saber sair da situação. Isso só acontece com estudo, colocando eles para fazer cursos, assistirem palestras. Com conhecimento eles saberão rejeitar”, opinou.

Mesmo com a criação de campanhas de combate a esse drama, o assédio ainda é um tabu quando o assunto é debate, prevenção ou denúncia. Visando romper essa barreira, o Sindicato de Atletas Profissionais de São Paulo trabalha na execução de ações e propõe discussões sobre o assunto. Para Rinaldo Martorelli, presidente do sindicato paulista, a conscientização dos profissionais que fazem o dia a dia do futebol é fundamental para que esse mal seja expulso dos vestiários e dos alojamentos da base.

“Acho que se formos avaliar pontualmente todos os problemas que existem dentro da modalidade, esse é o que mais me deixa inquieto. Imagina um pai ter um filho morando longe, em um alojamento com estranhos e depois ficar sabendo que ele foi molestado... é uma tortura. Por isso lutamos contra esse mal. A gente trabalha levando informação, prevenção e apresentando o caminho para a denúncia”, relata Martorelli, que também atuou como goleiro e jogou no Palmeiras na década de 1980.E

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Os sinais do abuso

Grace Range, doutora em psicologia
Grace Range, doutora em psicologia
Foto: Ricardo Medeiros

Um contato a mais, muitos elogios, presentes fora de hora… o abusador costuma conquistar as crianças antes de cometer os atos. Segundo a doutora em psicologia e especialista em crianças, Grace Rangel, professores e técnicos esportivos são percebidos pelas crianças como figuras paternas, mas quando o carinho passa da normalidade, é preciso ficar atento.

“Nem sempre o primeiro passo do abusador é o ato em si. A maioria tenta conquistar a criança, ganhar a confiança dela. Ele cria situações para ficar a sós com a vítima, quer controlar a rotina dela, apresenta uma certa possessividade. São sinais que os pais podem ficar atentos”, explica.

Segundo a especialista, as crianças são o foco dos abusadores porque são mais vulneráveis. Quanto mais novas, mais elas têm dificuldade em relatar o que aconteceu e até em identificar que foram abusadas.

“Um treinador é uma figura de autoridade. É alguém que a vítima respeita, confia e que tem autoridade sobre ela. Por isso, muitas vezes ela se sente compelida a obedecer e tem medo do que a pessoa é capaz de fazer com ela caso não obedeça“, afirma.

Abuso psicológico e ameaças

“Não é errado”, “é o nosso segredo”, são frases comumente ouvidas por vítimas. Abusando da confiança depositada neles, os criminosos distorcem a gravidade do fato tentando enganar a criança e o adolescente sobre o que está acontecendo.

Com medo e sem saber se expressar, as crianças vítimas de abuso permanecem em silêncio. No entanto, a psicóloga explica que alguns sinais sutis podem ser percebidos por familiares.

“A criança tenta evitar ficar perto da pessoa, não quer mais ir aos locais onde pode encontrar o agressor e exige ficar mais na presença dos pais. Elas podem ficar ansiosas e voltar a fazer xixi na cama, por exemplo”, relata Grace Rangel.

Nas crianças maiores, os sinais podem aparecer em um resultado ruim na escola ou em um aumento na agressividade.

Abordagem

Em caso de desconfiança, a especialista orienta que os pais procurem apoio psicológico. Se os abusos forem confirmados, um acompanhamento será necessário.

“Um fato tão grave sempre vai ter consequências na vida da vítima, afinal é uma agressão à integridade física e psicológica dela. A pessoa pode ficar mais agressiva, receosa de ter contato, ter dificuldades de se relacionar na vida adulta”, explica.

No entanto, com o acompanhamento adequado, os traumas podem ser minimizados. “O fato nunca vai ser apagado, mas com o tratamento pode se tornar algo que não acabe com a vida dela”, conclui.

Entrevista: “Se tem constrangimento é abuso”

Hugo Fernandes Matias (Defensor Público)

Hugo Fernandes Matias, defensor público
Hugo Fernandes Matias, defensor público
Foto: Carlos Alberto Silva

Os abusos nas categorias de base do futebol muitas vezes acontecem com crianças de famílias em situação de risco social. Sem conhecer seus direitos, essas famílias não procuram os meios legais para lidar com a situação. É nesse contexto que a Defensoria Pública pode ajudar, como explica o defensor Hugo Fernandes Matias, que coordena o núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado.

O que caracteriza abuso sexual contra uma criança?

Toda vez que uma criança ou um adolescente se sentir, ou for constrangido, ou levado a atuar de forma a exibir seus órgãos sexuais, a praticar ato sexual ou ato libidinoso, como uma carícia íntima por exemplo, é considerado abuso.

Há uma idade ?

Quando há conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos a gente presume que houve violência sexual, um estupro. A partir dos 14 anos, a lei entende que é possível que haja voluntariedade. Nesses casos, é preciso ver se havia uma pressão ou uma ameaça sobe a vítima.

A Defensoria Pública recebe esse tipo de denúncia?

Não com tanta frequência. Tem alguns crimes que prejudicam muito a vítima. As pessoas ficam retraídas, por causa do estigma social. Infelizmente. Tanto no Brasil, quanto no Estado, quanto no futebol inglês, essas histórias demoram para aparecer. A Defensoria Pública criou uma deliberação padrão para atender casos desse tipo. A pessoa pode procurar os núcleos de apoio da defensoria e pedir providência e até informações.

A gente ajuda na parte de saúde, encaminhando para hospitais e centros de apoio. Damos também encaminhamentos para o conselho tutelar e policia especializada.

Qual a punição para o agressor?

O estupro de vulnerável é considerado crime hediondo e a pena vai de oito a 15 anos de regime fechado. Mas você pode tornar a criança vulnerável por outras situações. Como filmar partes íntimas da criança, divulgar imagens dela nua ou algo do tipo. Com frequência, o agressor tem penas múltiplas, que são somadas.

Reportagem especial abuso sexual no futebol
Reportagem especial abuso sexual no futebol
Foto: Arabson

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Silêncio e prática velada

Violações sexuais são crimes corriqueiros no meio do futebol. Tanto que muitos clubes, empresários, jogadores profissionais e dirigentes quando são abordados para comentar sobre o assunto preferem o silêncio. Para vários deles ainda é um tabu levantar debates sobre o tema. É o que tenta explicar o pai de uma das vítimas.

“É bem difícil conseguir apoio de alguém do meio futebolístico quando se faz denúncias assim. Ao invés de apoio, depois o que encontramos são portas fechadas. Mas nossa função é denunciar e colocar esses caras na cadeia mesmo. O pior é que a maioria das pessoas famosas que podem ajudar pensam: ‘Se ninguém fala, eu que não vou me comprometer também’. É uma realidade no mundo do futebol e resolvi enfrentar com o meu filho. Tenho que ser exemplo”, comentou.

Ao invés de apoio, o que encontramos são portas fechadas
Pai de uma das vítimas

Pouco fiscalizada, a fábrica que prepara futuros jogadores segue produzindo feras da modalidade e mantendo suas abominações nas escondidas.

“Hoje acredito que temos que fazer a diferença na vida dos meninos. Se meu filho passou por isso, espero que outros não venham passar. Os pais não podem confiar em ninguém. Parece algo distante, coisa de filme, mas infelizmente acontece”, afirmou.

Os relatos narrados e os números comprovam que essa é a mais dura realidade das categorias de base dos clubes brasileiros. Na verdade, os crimes cometidos pelos molestadores no “outro lado da bola” ainda estão bem distantes de serem obras do cinema ou da ficção.

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Outros casos marcantes de assédio

Veja histórias que ganharam o noticiário a partir de denúncias feitas por atletas

Tortura

Na Inglaterra

No ano passado, o ex-jogador de futebol Andy Woodward veio a público denunciar que foi abusado sexualmente pelo seu antigo treinador Barry Bennell. Woodward confessou que foi estuprado repetidamente durante quatro anos. Após revelar os abusos que sofria publicamente, outros cinco ex-atletas resolveram vir a público para denunciarem o mesmo agressor. Depois de confessar os crimes, Bennell foi sentenciado a cumprir uma pena de nove anos de prisão.

O ex-jogador de futebol Andy Woodward veio a público denunciar que foi abusado sexualmente pelo seu antigo treinador Barry Bennell
O ex-jogador de futebol Andy Woodward veio a público denunciar que foi abusado sexualmente pelo seu antigo treinador Barry Bennell
Foto: Divulgação

Ameaças

Pressão psicológica

Em 2015, Marcio Ferreira, de 39 anos, foi detido após denúncias de que ele teria abusado sexualmente de crianças na Paraíba. O agressor treinava jovens atletas em uma escolinha de futebol e teria abusado, pelo menos, de cinco crianças com idades entre 8 e 12 anos. Ele fazia ameaças aos jogadores. No momento em que a Polícia invadiu a casa de Marcio Ferreira, o homem foi pego em flagrante assistindo vídeos em que ele tocava menores. O treinador confessou o crime e continua detido.

Presentes

Mãe percebe comportamento

No início deste ano, o treinador de uma escolinha de futebol de Belo Horizonte, em Minas Gerais, foi preso após abusar de três alunos adolescentes. As investigações da Polícia Civil começaram depois que a mãe de um dos garotos tomou conhecimento de conversas estranhas entre o filho e o homem. Ela começou a notar que alguns atletas chegavam a ganhar presentes. Foi quando denunciou o caso e o técnico acabou preso.

Crueldade

Crime volta a se repetir

Em busca do sonho de se tornarem jogadores, dois primos, ambos de 11 anos, se matricularam em uma escolinha. O que eles não sabiam era que o treinador, José Darcy Romoaldo da Silva, de 48 anos, acabara de sair da prisão, onde permaneceu seis anos cumprindo pena por atentado ao pudor de sete vítimas. Depois que saiu da cadeia, o agressor fundou uma escolinha de futebol em Fortaleza. Ele usava do meio para ganhar a confiança das crianças. Após violentar sexualmente os garotos, o agressor foi denunciado e preso em seguida.

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"As crianças precisam ser acompanhadas em todos os momentos"

O Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê punição punição aos responsáveis por crimes de assédios contra crianças. No artigo no 243 fica determinado que submeter crianças ou adolescentes a vexame ou a constrangimento pode ocasionar em multa de R$ 100 a R$ 100 mil. Além de uma suspensão pelo prazo de trezentos e sessenta a setecentos e vinte dias.

O artigo também determina que o Presidente do Tribunal (STJD ou TJD) encaminhará todas as peças dos autos, assim que oferecida denúncia, ao Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente. Comprovada a culpabilidade do agente, os autos serão enviados ao Ministério Público, após o trânsito em julgado.

As problemas relativos ao assédio sexual de crianças e adolescentes gera preocupação em dirigentes por todo o país. Aqui no Espírito Santo, por exemplo, o presidente da Federação de futebol, Gustavo Vieira, garantiu estar aliviado com a prisão de José Luís Teixeira Pereira.

Gustavo Vieira, novo presidente da Federação de futebol, foi eleito na manhã desta terça-feira
Gustavo Vieira, novo presidente da Federação de futebol, foi eleito na manhã desta terça-feira
Foto: Eduardo Dias

“Falo como presidente e como pai. Acho (o assédio contra menores) um crime repugnante. É um nojo. Isso transcende qualquer questão esportiva. Infelizmente, isso também ocorre em outras modalidades esportivas. O fato dele (José Luís) estar preso vai repercutir e talvez inibir que outros pessoas comentam esse crime”, opinou o dirigente capixaba.

Na avaliação de Gustavo Vieira, além da atuações dos órgãos competentes nas investigação, o cuidado dos pais e responsáveis também é fator determinante para prevenir crimes contra crianças e adolescentes.

“As crianças precisam ser acompanhadas em todos os momentos. Se possível, o pai tem que ir aos jogos, eventualmente acompanhar um treino. Em uma viagem longe, os pais podem tentar organizar um grupo de responsáveis para viajar junto com as crianças. A prevenção para proteger as crianças nunca é demais”, finalizou o presidente da Federação de Futebol do Espírito Santo.

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Saiba como prevenir e alertar as crianças contra o assédio

Recomendações

1 - Alertar as crianças de possíveis riscos de assédio.

2 - Dar liberdade para a criança se sentir à vontade em fazer uma possível denúncia.

3 - Pegar referências da escolinha e do treinador.

4 - Quando possível, acompanhar treinos e jogos do time.

5 - Se o time for fazer uma viagem, formar um grupo de responsáveis que possa viajar com as crianças.

6 - Se a criança ou adolescente joga em outro Estado, é preciso manter um diálogo recorrente e fazer visitas sempre que possível.