Impactos da lama

Tragédia no Rio Doce: qualidade da água ainda gera dúvidas

A falta de confiança afeta o sustento e o lazer dos moradores

Katilaine Chagas

Publicado em 04/11/2017 às 10h45

Dois anos depois da tragédia que encheu de lama de rejeito de minério da Samarco o Rio Doce e a pergunta que até não quer e nem pode calar é (e só estudos alternativos são capazes de dizer): afinal, a água do Rio Doce está ou não própria para captação, para banho ou para consumo?

Embora o bom senso e o sentimento de autopreservação gritem para que a população passe longe daquela água, hoje nenhum órgão oficial, governo do Estado ou a própria afirmam afirmaram categoricamente ou entram em consenso de que o líquido e o alimento que dali sai não podem ser consumidos.

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Tanto que a pesca, hoje, no Rio Doce não está proibida. A proibição vale apenas na foz do rio, em Regência, Linhares, por determinação da Justiça federal. Mas, mesmo liberada, a outra questão é: quem confia?

“Hoje eu vou vender para quem? Nós estamos pedindo a Deus para que saia a análise dessa água. Eu estou quietinho. Eu não tenho outra profissão a não ser a pesca”, diz Leone Carlos, 70 anos, presidente da Associação de Pescadores de Regência (Asper).

A pescadora Monique Rodrigues dos Santos César, 31, moradora da vila de Mascarenhas, em Baixo Guandu, também desistiu de pescar no rio, mesmo sem impedimento para isso. “Mesmo se pescar, ele vai ficar estocado porque não acha comprador para ele. Eu não tenho coragem de comer. Por que eu vou pegar para outra pessoa?”

A falta de confiança afeta não só o sustento financeiro, mas também o lazer daquelas populações que vivem à beira do rio. “O nosso lazer acabou porque nós fazíamos churrasco lá, levávamos nossas visitas. Minha menina fica doida querendo fazer churrasco lá”, reclama Monique.

A Samarco distribuiu uma publicação pela vila de Regência em que afirma não ser capaz de garantir a qualidade da água. “Um ano após a lama, eles (Samarco) deram um adiantamento para reformar o comércio para o verão de 2017. A gente fez e o público não veio. Para acabar de vez, ela publicou um jornal dizendo que não sabe se o mar de Regência está próprio para banho. Me deixou sem rumo”, reclama o professor de surfe Fabrício Fiorot, 42 anos.

É caro fazer a análise. No rio é menos caro, mas na parte marinha é mais. Porque tem que alugar navio para coletar amostra, é preciso mão de obra qualificada. E um equipamento para analisar metais custa mais de R$ 1 milhão
Renato Rodrigues, professor e pesquisador da Ufes

BALNEABILIDADE

Em Baixo Guandu, a prefeitura não faz estudo de balneabilidade da água do Rio Doce, para avaliar se ela é própria ou não para banho. Mas como a própria prefeitura afirmou, por meio de sua assessoria, não é necessário estudo para atestar a falta de confiança na água. Tanto que, mesmo liberada, a prefeitura não capta água do Rio Doce para fazer tratamento e redistribuição para a população. Hoje a captação é feita do Rio Guandu.

Em Colatina, não é realizado estudo de balneabilidade. O engenheiro químico do Sanear Arthur Batista explica que seria necessário monitorar por cinco semanas no mínimo para analisar a presença de coliformes fecais.

A Prefeitura de Linhares informou apenas que o banho no Rio Doce é permitido, mas não detalhou se é feita análise da água.

MUITO CARO

O professor e pesquisador da Universidade Federal (Ufes) Renato Rodrigues Neto aponta uma das possibilidades para não ter definição sobre a qualidade da água até hoje. “É caro fazer a análise. No rio é menos caro, mas na parte marinha é mais. Porque tem que alugar navio para coletar amostra, é preciso mão de obra qualificada. E um equipamento para analisar metais custa mais de R$ 1 milhão”, exemplifica o professor.

Ele é coordenador do Laboratório de Geoquímica Ambiental da Oceanografia da Ufes, que no início da tragédia fazia avaliação da qualidade da água. Ele reconhece que no início havia mais pessoas disponíveis para trabalhar. “Depois foram arranjando outros empregos”, explicou.

A última análise feita pelo grupo é de dezembro do ano passado. “No primeiro ano, vimos que a qualidade piora em épocas de chuva”, relata.

Nesse vai e vem, o receio continua, como relata o surfista Fabrício Fiorot. “A gente tinha dúvida se podia ou não voltar a surfar. Se tinha alguém tentando voltar à vida normal, quebrou a cara.”

POPULAÇÃO NÃO TEM CONFIANÇA EM CONSUMIR A ÁGUA

Semanas após a chegada da lama de rejeitos da Samarco ao Estado, a cidade de Colatina testemunhou o caos. Filas e mais filas se formavam por toda a cidade para receber água mineral potável, que era entregue, inclusive, com a ajuda do Exército, para garantir a ordem, o que nem sempre foi bem-sucedido.

O Rio Doce era e ainda é a única fonte de captação e distribuição de água para a população. Com o rio cheio de lama, a Samarco foi obrigada a distribuir gratuitamente água.

Hoje aquelas longas filas não se veem mais. Mas a desconfiança... essa continua do mesmo jeitinho. “Não pode nem cozinhar com a água. Não tem mais condições de cozinhar e não tem condições de consumir a água. Dá mal para o banho. E ainda assim há pessoas que dizem ter coceira no corpo”, diz o polidor Giovani Wotekoski, 35, morador de Colatina.

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“As pessoas têm reclamado de coceira no corpo. Já teve gente da minha família com muita coceira. O médico falou que era por causa do excesso de produto químico na água. A água vem branca igual a leite para gente, quando não vem amarelona de barro”, denuncia Giovani.

Hoje a captação e distribuição da água é feita pela prefeitura por meio do Serviço Colatinense de Saneamento Ambiental (Sanear) para 41 mil lares.

O repositor Vitor Rodrigues, 19 anos, confirma o receio. “A gente sempre tem medo. A água já tem gosto de cloro na boca, dá para sentir a sujeira.”

Ele mostrou para a reportagem como a água distribuída chega às caixas-d’água, com a formação de placas escuras de sujeira.

O município diz que o controle da água é feito pelo Laboratório Central de Controle da Qualidade da Água e por laboratórios contratados.

Por nota, a prefeitura afirmou ainda que o cloro é adicionado em quantidade adequada e que a cor branca é por causa da oxigenação na rede.

Moradores que não confiam na água distribuída pelo Sanear recorrem às diversas nascentes de água localizadas no município. “Eles enchem a água de produto, que está causando muitas doenças. Muita gente não confia na água até hoje. Como eu não confio, pego água em nascente”, diz o pedreiro e líder comunitário Solivan Alves dos Santos, 53 anos.

Mas, para acrescentar uma camada mais triste a essa história, há suspeita de que as nascentes não estejam em boas condições. Um projeto iniciado em 2014 e executado até julho de 2017 pelo Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) identificou e caracterizou as nascentes do município.

O resultado é que a maioria das 128 nascentes estão em condições ruins ou péssimas de conservação e com a vegetação do entorno degradada. A avaliação foi feita no perímetro urbano e em áreas não particulares, por isso é uma estimativa.

“Eles (população) acham que por ser nascentes é limpa. Mas, em perímetro urbano, a rede de esgoto pode acabar sendo ligada à rede pluvial, por descuido ou não. E pode haver ligação clandestina”, diz a professora Márcia Cristina de Oliveira Moura, que coordenou o projeto na cidade.

O trabalho não fez a análise da água das nascentes, mas conferiu se a área do entorno estava degradada e se havia lixo em volta, com presença de esgoto, espuma, animais e casas próximas. “A maioria está degrada ou teve condições ruins ou péssimas”, conclui a professora.

A prefeitura afirma que tem projetos de recuperação das nascentes.

Enquanto isso, a reclamação de Giovani sobre a nascente em São Braz confirma a avaliação do projeto. “Olha o estado que está isso aqui, tudo sujo, cheio de escorpião”, diz ao apontar para o local cheio de lama, lodo, tábuas e embalagens abandonadas.

EM BAIXO GUANDU, O QUE ERA PROVISÓRIO PERSISTE

Diferente de Colatina, o município de Baixo Guandu, o primeiro a ser atingido pela lama da Samarco, tem outra opção de captação de água, o Rio Guandu. Na época, a troca de fonte foi feita provisoriamente do Rio Doce para o Rio Guandu. Mas o que era para ser temporário continua sendo a principal e única fonte hoje, dois anos depois da catástrofe ambiental.

A principal queixa dos moradores é em relação à sujeira visível na represa do Rio Guandu, onde é realizada a captação. “A gente passa por ali e vê cocô boiando. Então a gente acaba comprando água”, diz a pescadora Ana Maria Cardoso, 52, moradora do bairro Rosário II.

A água chega até bem tratada, não tem mau cheiro. Mas jogam lixo na represa. Até cachorro em estado de decomposição tiraram daqui
Funcionária pública Ana Maria Cardoso, 52,

A Prefeitura de Baixo Guandu ainda afirma oficialmente que o sistema é provisório, mas reconhece que não há planos de retorno para captação da água no Rio Doce, “tendo em vista análises químicas que comprovam a contaminação daquele manancial por metais pesados”, aponta trecho na nota. “Por questão de segurança, a captação continuará no Rio Guandu.”

A prefeitura informou ainda que, segundo o diretor-geral do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), Luciano de Bem Magalhães, a limpeza na represa onde a água é captada é feita pelo menos duas vezes por semana.

E atribuiu a sujeira que se acumula na represa à ação dos próprios moradores, já que parte do trajeto do leito, antes de chegar à represa, passa em parte do perímetro urbano da cidade.

Acrescentou que três vezes por semana o SAAE realiza análises da qualidade da água consumida. “Os padrões apresentados nessas análises estão dentro das exigências das organizações de saúde”, diz outro trecho da nota.

“Já está ajustado com a Fundação Renova, a liberação de recursos da ordem de R$ 12,7 milhões para Baixo Guandu. A verba será utilizada no sistema de tratamento de esgotos da cidade. Os projetos relacionados ao tratamento estão em fase de elaboração e a expectativa é de que em janeiro/2018 já estejam sob análise da Fundação Renova, para liberação dos recursos e licitação das obras”, conclui a nota.