A vida no lixo

Catadores de lixo são vítimas do descaso público

Quem ainda atua em lixões desempenha, segundo as autoridades, atividade análoga à escravidão

Publicado em 19/11/2017 às 06h39

Texto: Luisa Torre, Mikaella Campos e Natália Bourguignon

Fotos: Marcelo Prest

Quinto maior produtor de lixo no mundo, o Brasil ainda tem a erradicação dos lixões como um desafio difícil de superar. São quase 3 mil áreas irregulares em operação em 1.552 municípios, de acordo com o relatório Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Além dos territórios já conhecidos das autoridades, existem outros três mil clandestinos, explica o consultor de sustentabilidade Tião Santos, presidente da Associação de Catadores de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. 

Boa parte desses terrenos é usada por trabalhadores humildes que enxergam somente nessa atividade de catador de resíduos alternativa para vencer o desemprego, a falta de qualificação profissional e a pobreza extrema.

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A manutenção dos lixões e a ausência de políticas públicas para migrar os catadores do trabalho inadequado para uma estrutura digna, segundo a procuradora do Trabalho do Paraná, Margareth Matos de Carvalho, podem ser considerados crimes de exploração de mão de obra de forma análoga à escravidão.

“Os municípios poderão ser responsabilizados, incluindo o prefeito. A punição será por crime ambiental na esfera estadual e por exploração do trabalho escravo na esfera federal”, explica Margareth, coordenadora do Fórum Lixo e Cidadania no Paraná.

Com a crise econômica e a elevação do desemprego, a procuradora do Trabalho explica que a conjuntura piorou com um aumento do número de pessoas que trabalham nos aterros. “Infelizmente ainda temos muitas famílias sobrevivendo do que retiram dos lixões, inclusive se alimentando de restos de comida encontrados no local. Não temos estatísticas oficiais recentes, nem mesmo em relação ao número de catadores trabalhando nas ruas. Mas a estimativa é de que passa de um milhão de pessoas no país.”

REGRAS SÓ NO PAPEL

Em 2010, a Lei Federal de Resíduos Sólidos (12.305/2010) deu o prazo de quatro anos para as cidades se adaptarem e acabarem de vez com essa estrutura. Muitas não conseguiram cumprir com a determinação, que incluía também a formação de associações de catadores e o fim da transferência de materiais recicláveis para aterros, com a implantação da coleta seletiva.

Um ano antes do prazo de adaptação estabelecida pela legislação se encerrar, em 2013, 68 dos 78 municípios do Estado pouco haviam avançado para atender as regras. Essas cidades assinaram um Termo de Compromisso Ambiental com o Ministério Público do Espírito Santo (MPES), Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Associação dos Municípios do Espírito Santo (Amunes).

A promessa era dar destinação ambientalmente adequada aos resíduos, e também criar políticas para incluir as famílias que viviam dos lixões num modelo seguro de trabalho. Nesse modelo, catadores não podem trabalhar dentro de células (buracos onde o lixo úmido e seco, misturado, é depositado), devem ter uma associação com estrutura física e equipamentos, e devem receber apenas resíduos secos e recicláveis fruto da coleta seletiva, como vidro, plástico, papel e papelão, para serem separados, enfardados e vendidos.

Municípios poderão ser responsabilizados, incluindo o prefeito, por crime ambiental e por exploração do trabalho escravo
Margareth de Carvalho, procuradora do Trabalho

O prazo terminou em 2014, mas há uma proposta tramitando no Senado que estabelece novas datas para o fim dos lixões, que vão de julho de 2018 a julho de 2021, conforme o tamanho da população.

Avanços ocorreram, sendo o Estado o melhor posicionado no país em relação ao fechamento dos lixões, conforme explica a diretora-presidente do Iema, Andreia Carvalho. Cerca de 60 municípios (78%) não jogam o lixo em aterros ilegais ou clandestinos mais.

Mesmo que não tenham mais lixões, porém, dessas cidades, 25 ainda usam sistema de transbordo (local para onde vai o lixo antes de ser encaminhado para os aterros) sem licenciamento ambiental.

Além disso, a maioria dos 78 municípios não tem dado um rumo apropriado aos materiais recicláveis, algo que impede os catadores de atuarem com o serviço de triagem e venda dos produtos reaproveitáveis.

“Temos chamado os gestores municipais para dialogar. Nossa meta é ser o primeiro Estado do país a não ter mais lixões nem catadores trabalhando em situação de vulnerabilidade”, afirma Andreia.

No Estado, o MPT explica que tem acompanhado o cumprimento do TCA e da legislação federal para garantir a proteção dos catadores de resíduos sólidos enquanto as cidades vão implantando de maneira gradativa a coleta seletiva. “O trabalho nos lixões e aterros somente existe porque a Lei de Resíduos Sólidos não está sendo cumprida pelos municípios. Se a destinação for correta, não haverá a necessidade do trabalho em tamanha degradância social”, afirma a procuradora do Trabalho em Vitória, Daniele Santa Catarina.

PERDAS

A manutenção de lixões e a ausência de uma efetiva política de coleta seletiva tem feito o país perder por ano cerca de R$ 8 bilhões por não reciclar, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Resíduo é dinheiro. Os gestores públicos não se preocupam em acabar com lixões e com o envio desses materiais para aterros. Falta também educação ambiental no Brasil. Esse tema deveria ser tratado como se fosse prioritário, como a saúde, a educação e a segurança são”, afirma Tião Santos, que passou a infância com a família no lixão de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, um dos maiores da América Latina.

O fechamento do local deixou um gigante passivo social, além de ambiental. Promessas feitas aos catadores não saíram do papel, como a revitalização da área e a qualificação profissional dos trabalhadores. “Ninguém se preocupou com a inclusão de mais de quatro mil pessoas no mercado de trabalho”, critica Santos ao acrescentar que o lixão era a única fonte de renda da família. “Tentei oportunidades fora dessa realidade, mas acabei voltando por entender o valor de ser catador, da importância que esse profissional tem para o ambiente e para a sociedade.”

De acordo com o coordenador geral do Instituto Sindimicro, Hugo Tofoli, a política nacional diz que o resíduo é bem de valor e de geração de emprego e renda. O instituto é responsável por fomentar a formação de associações de catadores nos municípios.

“Ter uma coleta seletiva funcionando significa geração de renda e circulação de valores no comércio e nos serviços, principalmente de municípios menores. O problema principal das associações é a pouca quantidade de resíduos que chega, já que muita coisa acaba sendo enterrada”, diz.

No Estado, a Secretaria de Estado de Saneamento, Habitação e Desenvolvimento Urbano (Sedurb) é a responsável pela implantação do programa ES Sem Lixão, que tem como objetivo acabar com a destinação incorreta de resíduos no municípios capixabas, explica o subsecretário de Habitação e Regularização Fundiária da Sedurb, Marcelo de Oliveira.

“O programa tem como objetivo fazer consórcios para diminuir os custos da destinação dos resíduos coletivamente. O governo entra com equipamentos e desapropriação de terrenos para construção de áreas de transbordo e centros de tratamento de resíduos (CTR). Já foram desapropriadas 13 áreas na região Norte e Noroeste. No Sul, os municípios entenderam que um CTR privado, que fica em Cachoeiro, atende a demanda”.

Atualmente, o custo de transporte dos resíduos até o aterro, principalmente para municípios do Norte, é muito alto. “O custo para municípios como Montanha é de R$ 80 para enterrar a tonelada do resíduo e de R$ 140 para transportar, isso por causa da distância, já que no Norte todos levam o lixo para Aracruz, onde há um aterro privado licenciado”, pontua. Segundo Marcelo, a meta é, até 2018, não ter mais nenhum município fazendo a destinação incorreta dos resíduos sólidos.