Todos os dias, Mariana, de 13 anos, e Matheus, de 11, acordam por volta das 7h e tomam café da manhã para se preparar para a aula. A rotina não seria diferente da de muitos estudantes não fosse por um detalhe: enquanto a maioria se dirige para a escola depois desse ritual, Mariana e Matheus continuam em casa, onde aprendem as lições com o próprio pai.
A legalidade desse tipo de ensino, também conhecido como homeschooling, deverá ser julgada na próxima semana pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O tema é controverso. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 anos. Apesar disso, mais de 7 mil famílias brasileiras, segundo dados da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), adotam a prática do ensino em casa.
Fiz intercâmbio nos Estados Unidos, e a família que me recebeu era adepta do homeschooling. Lembrei disso quando comecei a ficar preocupado com a qualidade das escolas públicas onde meus filhos estudavam. Como não tínhamos condição de colocá-los em uma particular, optamos pela educação domiciliar explica Wesley Ayres, pai de Mariana e Matheus.
Formado em Ciências da Computação, Ayres se preparou por um ano antes de tirar as crianças da escola. Hoje, o pai ensina as crianças, diariamente, das 8h às 10h, em sua casa em São Caetano do Sul, em SP. Todos os dias, elas têm aulas de português, matemática, história e geografia. A área de Ciências da Natureza é trabalhada uma vez por semana, assim como o curso de italiano. Depois do horário regular, os filhos podem usar o tempo para fazer pesquisas e ler. Na parte da tarde, trabalham atividades diferenciadas, como música, desenho e tênis.
Com a educação domiciliar, as crianças desenvolvem um gosto pelo conhecimento, porque não é uma imposição. Elas gostam de estudar, leitura é algo que adoram. De janeiro até agora minha filha já leu 49 livros. Existem dificuldades no homeschooling, mas não querer estudar não é a maior delas opina Ayres.
Até 2016, mais de 30 famílias enfrentavam processos na Justiça por oferecer esse tipo de educação a seus filhos no Brasil. Esse número foi extinto desde que o ministro Luís Roberto Barroso, relator da questão no STF, suspendeu o processamento de todas as demandas que tratavam do assunto até a apreciação pelo plenário da Corte. Após a votação, a decisão terá repercussão geral.
A Constituição diz que o período de 4 a 17 anos é de educação compulsória, e não de escolarização compulsória. Ou seja, é um período no qual as crianças têm que passar por algum tipo de processo educacional, mas não necessariamente na escola defende Alexandre Moreira, diretor jurídico da Aned.
ISOLAMENTO SOCIAL
Em 2015, a Procuradoria Geral da República (PGR) se manifestou contrária à liberação do ensino domiciliar. Segundo o órgão, a Constituição não abre brecha para esse tipo de prática. O então procurador-geral, Rodrigo Janot, defendeu que a integração do indivíduo à escola é fundamental para a construção de uma sociedade justa.
O imbróglio não se restringe ao âmbito judicial. Ainda que os adeptos da educação domiciliar citem aspectos positivos da prática, o modelo gera divergências no campo educacional. Um dos principais pontos questionados é justamente um dos argumentos utilizados pela PGR: o fato de a criança ser privada de um ambiente de convivência plural.
Por um lado, os defensores do homeschooling apontam lacunas e problemas da escola que os legisladores e os gestores não podem ignorar. Por outro, qual é a ultima instituição em nossa sociedade que tem como finalidade congregar pessoas de diferentes perfis? A escola. É o lugar onde convivem o branco e o negro, o alto e o baixo, o gordo e o magro. Isolar o filho nos padrões familiares anulará a possibilidade de trazer uma colaboração dessa família para a melhoria da escola afirma Carlos Roberto Jamil Cury, doutor em Educação pela PUC-SP.
Para a filósofa e pesquisadora de Ética e Educação Carla Ferro, há espaço para todos os modelos:
Diante do fato de muitas pessoas recusarem a escolarização, não é interessante buscar uma resposta única. Essa recusa mostra justamente que diferentes modos de vida são possíveis e que a diferença não implica oposição. Quando uma família ou uma comunidade vivem de modo que a escola não aparece como caminho necessário, isso não quer dizer que desejem o fim da escola nem que encontraram um caminho que todos devem seguir. A coexistência pacífica e colaborativa de diferentes modos de vida é uma expressão de saúde da sociedade.
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