Paulo Bonates

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Muito além da tragédia com a menina Thayná

Batalhei muito pelo acolhimento em saúde mental em hospital geral. Relacionar loucura com violência é alienação


Foto: Arabson

*Paulo Bonates

A cena chocante do assassinato da criança Thayná me levou ao Manicômio Judiciário, hospital que dirigi por cerca de seis anos. Trata-se de uma instituição ligada à Secretaria de Justiça, para tratamento de pessoas periciadas como doentes mentais que haviam cometido crimes e não tinham consciência do significado do ato e portanto inimputáveis.

Os assassinatos cometidos eram de formato bizarro e sem sentido. Lembro-me de um caso que atendi, o de um rapaz que acometido de surtos psicóticos matou na calada da noite cerca de 10 mendigos. Quando lhe perguntei a razão do massacre solitário, enquanto os mendigos dormiam ao relento, o preso paciente afirmou que sentia muita pena deles e não poderia deixá-los à mingua, pois adoeceriam.

É preciso não confundir psicose – que era o caso desse paciente – com psicopatia, um desvio de caráter no qual a consciência é plena, constitui-se por delinquência e perversidade com ganho secundário.

Esse paciente iniciou o tratamento medicamentoso e psicoterápico e um mês depois reorganizou-se e trabalhou na cozinha do hospital com desempenho normal. Desapareceram de sua mente os delírios, as alucinações e a incapacidade de reconhecer o caráter criminoso de um ato ou sua relação com isso. Durante minha gestão com uma equipe dedicada, apesar da especificidade da clientela – todos dependentes de drogas ou assassinos –, não ocorreu um único episódio de violência.

Quando vi pela TV chegar o suspeito da morte da criança Thayná e sua história de crimes, a mãe caída de dor e o cenário da vida da família, deduzi que a tragédia era maior do que parecia. Estava, como sempre está, a carência em todos os sentidos, que gera um conjunto de loucuras como essa. Batalhei muito pelo acolhimento em saúde mental em hospital geral. Relacionar loucura com violência é alienação.

Quando trabalhei como assessor na gestão psiquiátrica do Inamps, consegui a criação de serviço de curta internação de psicóticos no pronto-socorro psiquiátrico integrado do Hospital São Lucas. Contra frondosas resistências que persistem até hoje, quando o doente mental recebe a mesma avaliação social da Idade Média.

Funcionou, e muito bem, por muitos anos impedindo a superlotação, por exemplo, do Hospital Adauto Botelho, no movimento de reverter a tendência hospitalocêntrica.

É possível sim ampliar o foco dessa horripilante citada tragédia para fazer uma leitura mais ampla. É preciso a ação imediata e isso foi feito a meu ver com absoluta competência do Estado. Não custava nada enfocar todos os aspectos da Saúde Coletiva pertinentes.

*É médico psiquiatra, psicanalista e jornalista

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